sábado, 15 de maio de 2010

Memória 24 : Emily Dickinson



Há muito que gostaria de ter falado de Emily Dickinson (1830-1886), mas não terá havido motivo suficiente ou razões objectivas para o fazer. Esta autora americana, que criou um "dialecto" poético de sintaxe, pontuação e elípticos sentidos muito próprios, compôs uma obra imensa de mais de 1.500 poemas, a maior parte deles breve, mas à sua morte, em 15 de Maio de 1886, só tinha publicado apenas 7 poesias. Celebra-se, hoje, o aniversário da sua morte. E nada melhor que a morte, que está obsessivamente nos seus poemas, para lembrá-la.
Numa carta a um amigo, traça de si um curto retrato, algo irónico: "... pequena como a carriça; o meu cabelo é forte como o ouriço das castanhas e os meus olhos como o «sherry» que o visitante deixa no fundo do cálice...". Emily Dickinson viveu, grande parte da sua vida, em reclusão por ela escolhida. Ou como disse em verso: "...A alma escolhe a sua própria sociedade / Depois fecha a porta...". Quando, raramente, saía usava quase sempre roupas brancas. As suas amizades, nem sempre correspondidas em profundidade pelos outros, quer fossem masculinas ou femininas, eram intensas. Como intensa era a sua vida interior. Lia muito, sobretudo a Bíblia, mas também Shakespeare (aliás, muitos dos seus poemas lembram diálogos dramáticos ou teatrais), e John Keats. A morte, a eternidade e a dor ("Depois de uma grande dor chega o sentimento / Formal - os nervos descansam silenciosamente como túmulos;...") são os seus temas mais recorrentes e obsessivos.
Jorge de Sena traduziu-lhe, em 1978, com grande qualidade, 80 poemas (Edições 70). Para a tradução que fiz, e transcrevo a seguir, escolhi um poema que, creio, nunca terá sido vertido para português. A exemplo de William Blake, René Char ou Saint-John Perse, traduzir Emily Dickinson é tarefa condenada à imperfeição pela singularidade da sua poesia. Além disso a escritora e poeta americana raramente dava títulos aos poemas, títulos esses que, em muitos autores ajudam à descodificação dos temas e melhor compreensão da obra em si.


Porque não podia deter a Morte
Ela gentilmente me travou;
A carruagem parou precisamente
Entre nós e a Eternidade.

Guiamos sem pressa, suavemente,
E eu pus de lado
O meu trabalho, e o ócio também,
Por causa da sua urbanidade.

Passamos pela escola onde crianças
Lutavam no recreio;
Passamos por searas que nos fitavam
E passamos também p'lo pôr do sol.

Paramos junto à casa que parecia
Da terra o prolongamento;
O telhado mal se via
A cornija um alto de terra apenas.

Tantos séculos se passaram; cada um
Sentia os dias cada vez mais curtos
E a princípio suspeitei que a fronte
Dos cavalos rumava à eternidade.

2 comentários:

  1. Muito difícil para mim, mas ainda assim consigo perceber que a dificuldade nada tem a ver com a tradução. Os versos fazem sentido. O todo é que me escapa... Ainda estou muito longe...

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  2. Para c. a. :
    o que lhe posso dizer ( e não explicar)é que E. D. era extremamente sensível, gentil e inesperada nas suas amizades. Era, tanto quanto me apercebo pela leitura dos seus poemas, uma alma funda e secreta. Por exemplo,gostava de contar, com pormenor, ternura, mas também com alguma crueldade à mistura, histórias ás crianças que lá iam a casa. Eu penso que havia muito de místico ( e isto é uma forma fácil de explicar as coisas que não entendemos completamente...)nos poemas de Emily Dickinson.
    Também tenho a tentação de pensar que E. D. era uma mulher que, desde que teve a consciência de si mesma,ansiava pela morte. Sem ansiedade, mas com intensidade tranquila: há pessoas assim...
    Obrigado pelo seu estimulo, meu Caro c. a. .

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