Se a pequena tiragem original de 200 exemplares de O Livro de Cesário Verde, editado pelo seu amigo Silva Pinto, em 1887, justifica a rareza e preço da obra em leilões e nos alfarrarrabistas, alguns autores e obras, no século passado, ganharam o favor bibliófilo insólito de raridades, e ainda hoje são caros, sem razão aparente. Estão neste caso, alguns dos livros de Herberto Helder e de Luiz Pacheco.
O jornal Público deu a notícia agradável, ontem: um coleccionador entusiasta, embora discreto e anónimo, promoveu com o patrocínio da Livraria Buchholz, uma exposição que abrange toda a obra editada de Herberto Helder (1930-2015)., totalizando 60 títulos. A mostra pode ser visitada até 21 de Maio de 2025.
É minha convicção, de há muito, que um (bom) poeta pouco produz de qualidade, na velhice. Haverá raras excepções, como talvez Herberto Helder mas mais pelo registo diferente ou insólito dos poemas dos últimos livros, em relação ao estilo anterior a que estávamos habituados, seguramente.
Ora, em Conta-Corrente 2 (1977-1979), Vergílio Ferreira (1916-1996) vem em meu socorro, corroborando a minha ideia, parcialmente e de algum modo, ao escrever: "...E contei que a Simone de Beauvoir, no seu livro LaVieillesse, e segundo as estatísticas, dá os limites da criatividade em cada sector cultural. Assim o pintor é quem dura mais, pintando praticamente até à idade mais avançada; o matemático e o físico cessam pelos trinta e poucos anos, o romancista acabará aí pelos sessenta mais ou menos." (pg. 18)
Não é muito frequente, hoje em dia, encontrarmos, em livrarias normais, livros com alguns anos, de casas editoras já desaparecidas ou em vias de extinção. Os chamados fundos, habitualmente e para poupar despesas de armazenamento, são guilhotinados sem quaisquer contemplações. Assim se perdem obras de reconhecido mérito e interesse, que desaparecem de circulação comercial. Ora, estes dois livrinhos da colecção Passagens, da Nova Vega, encontrei-os, novos e em bom estado, na Livraria Escriba, na Cova da Piedade. O preço era convidativo - trouxe-os para casa. O que foi uma boa decisão, no meu entender - o estudo sobre Herberto Helder é, no mínimo, bem feito, sugestivo e esclarecedor.
É a lei do mais forte. E assim como o tubarão engole imensos peixes miúdos, também hoje as grandes editoras vão engolindo outras mais pequenas. Perderam-se deste modo editoras com personalidade própria (outras, é certo, que ainda mais minúsculas, vão surgindo...), com requisitos e tendências de qualidade especiais. A Assírio & Alvim era uma delas, mas foi engolida pela Porto Editora. Talvez tudo tenha começado com a transferência espectacular (a exemplo dos futebolistas) de Herberto Helder para esta empresa portuense, ainda em vida...
(Já agora, alguém ouviu falar no Poeta, ultimamente?)
A Assírio & Alvim publicava até um curioso encarte (A Phala) bissexto (grátis?) de que, aqui e em imagem, reproduzimos o nº 11. Que, por coincidência, abre com o poeta madeirense que ainda publicava em Lisboa, nessa altura, os seus livros.
Com mais de 25 títulos publicados, os Cadernos de Poesia, das Publicações Dom Quixote, apesar do preço (Esc. 25/ 35$00) da época e modesta apresentação tiveram elevado prestígio nos anos 60/70, e muitos dos seus números esgotaram e vieram a ser reeditados (Neruda, Carlos de Oliveira, Vinicius, O'Neill...) posteriormente.
O volume 18, de Maria Teresa Horta (Minha Senhora de Mim), foi retirado do mercado, pela Censura estadonovista e obras de Natália Correia (As Maçãs de Orestes) e de Sophia (Grades) esgotaram, atestando o interesse que a poesia feminina despertava nos leitores de então.
Não creio que as tiragens fossem pequenas, mas ainda hoje estes livrinhos têm grande procura. Alguns são até muito pouco frequentes, nos alfarrabistas, e, quando aparecem nas lojas ou em leilões da especialidade, saem caros.
Um dos casos mais sintomáticos é o volume 19, desta colecção, editado em 1971. Anotem-se, para exemplo, os três preços mais de recentes (2019) de Vocação Animal, de Herberto Helder:
- Leilão online da Olx (Agosto) : lote vendido por 50 euros.
- Na BestNet, exemplar arrematado por 100 euros.
- No próximo mês de Dezembro (4 e 5), a Livraria Olisipo (lote 310) anuncia um exemplar, com uma estimativa de venda entre 100 e 200 euros!
Donde se poderá concluir que Herberto Helder é um valor seguro, até porque nem todos os poetas que constam dos Cadernos de Poesia, da Dom Quixote, atingem este elevado preço...
O poema de Herberto Helder (1930-2015), acima reproduzido, integrava o terceiro número de O Tempo e o Modo (Março de 1963). Possivelmente, ter-lhe-á sido pedida colaboração poética para a revista, a que o poeta correspondeu.
Nem sempre as encomendas são supridas por artigos de primeira qualidade. E creio que este poema não veio a integrar nenhuma das Poesia Toda que ciclicamente Herberto Helder editava. Seja como for, e na minha magra opinião, ele tem a marca do Poeta.
Aqui fica para o lembrar.
Raramente a atribuição de prémios é consensual, muito especialmente, os galardões literários. Mas também as recusas despertam polémica - estou a lembrar-me de Jean-Paul Sartre e Herberto Helder, por exemplo, que devem estar na memória de muita gente.
A imagem que encima este poste reproduz, parcialmente, a carta enviada a Marcel Proust (1871-1922), a comunicar-lhe a atribuição do Prémio Goncourt, em 10 de Dezembro de 1919, pela sua obra À l'ombre des jeunes filles en fleurs. Ora, este prémio foi dos que mais polémica causou.
O concorrente mais chegado de Proust, ao Prémio Goncourt, era Roland Dorgelès (Les croix de bois) que estivera nas trincheiras, e estava-se no rescaldo da I Grande Guerra, em que Proust não tomara parte. Este, obtivera 6 votos, enquanto Dorgelès só conseguira 4, do júri Goncourt.
Mas Proust foi muito atacado, sobretudo na imprensa e no Bulletin de l'Association générale desmutilés de la guerre. Chamaram-lhe snob e burguês. Em La Revue de Paris, a propósito da extensão do livro, Fernand Vandérem falou de "éléphantiforme". Um jornal referiu: "Proustitution"...
Hoje, a obra de Marcel Proust, no entanto, é consensual e ele pode continuar a dormir descansado.
Como Sophia (1919-2004) está na ordem do dia e anda nas bocas do mundo (português), achei oportuno aqui registar, em poste, cópia de uma carta que Herberto Helder (1930-2015) lhe mandou de Santarém (a 5 de Junho de 1962), acusando a recepção do LivroSexto (1962) e referindo o seu gosto pela leitura da obra.
Quanto ao meu exemplar, que é da 3ª edição (1966), lembro-me bem do prazer que tive a lê-lo, com destaque especial para os poemas A Conquista de Cacela, O VelhoAbutre e As Pessoas Sensíveis. Creio que terá sido, na obra de Sophia Andresen, o seu livro talvez ostensivamente mais interventivo, do ponto de vista político, que publicou.
Tendo começado a sua actividade profissional na desaparecida Livraria Biblarte (creio), Luís Gomes (Livraria Artes & Letras) é um Livreiro-alfarrabista que reúne, como poucos dos seus confrades, um saber de experiência feito com um apurado sentido crítico literário. A sensibilidade poética não lhe é alheia, nem um vasto conhecimento sobre o livro antigo.
Dedicou-se, sobretudo, às vanguardas literárias portuguesas e à literatura moderna. Por isso, o que aqui nos diz sobre Herberto Helder (1930-2015), tem a garantia sólida do conhecimento real.
Ao fazer a tradução do anterior excerto de Paul Valéry, lembrei-me, em simultâneo, de Pablo Picasso e de Herberto Helder, como potenciadores de um público novo ou muito próprio, pela sua ruptura artística com o passado. E que Valéry classifica, em geral, como a segunda corrente de criadores.
Porque a Arte evolui pouco a pouco, e só gradualmente se vão alterando os cânones onde se insere a maior parte dos seus agentes. O que permite habituar, sem transtornos, a corrente maioritária do público e amadores a esse ligeiro e gradual evoluir. Sem qualquer perturbação estética de maior.
As andorinhas parecem, por agora, ter acabado a sua tarefa de sobrevivência alimentar, em voo, seriam cerca das 20h45. Daí, talvez três ou quatro moscas que se asilaram politicamente no recesso morno e acolhedor da varanda para, uma vez livres das caçadoras, se abandonarem, de novo, ao ar livre, era quase já noite.
Há associações bem estranhas: na varanda a leste, parece estar a crescer um frágil e núbil pé de salsa, no restrito vaso das duas orquídeas brancas. Terá pedido licença às suas aristocráticas vizinhas?
Naturalmente, os filhos florescem-nos, sobretudo, por entre os nossos 20/30 anos, embora hoje já venham, muitas vezes, de pais mais entrados, quando não serôdios. Talvez por atrasada alforria, descuido ou desespero de idade biológica.
A obra de arte, com frequência, demora toda uma vida, até aparecer - assim Il Gattopardo.
Quanto à poesia de qualidade, e mais irreverente, ou surge logo nas primeiras obras, ou nem vale a pena insistir. Nem todos são Herberto Helder para nos surpreenderem também com obras-primas de velhice.
Ainda não é desta que eu faço as pazes com a ficção. Tenho à minha espera umas Crónicas (EmMinúsculas) de Herberto Helder, que vou buscar amanhã. E encomendei, na Livraria Escriba, a Correspondência, de Ilse Losa (Estreitando Laços, da Afrontamento), bem como MemóriasSecretas, de Mário Cláudio, editadas pela D. Quixote, cuja primeira edição esgotou rapidamente.
Depois de, sem eu dar por ela, no supermercado, me terem impingido, subrepticiamente, uma carteirinha com 3 decalques infantis por que paguei 9 cêntimos, fico surpreendido, através do cartoon de Luís Afonso, no Público, com um novo lobby que está a imiscuir-se, como quem não quer a coisa, nas Escolas: o das inefáveis nutricionistas. Como se não bastassem os psicólogos...
E parece que os diplomatas lusos, no seu melindre de finas rendas e sensibilidade ociosa de croquete, amuaram com o nosso PR, pelas loas que ele teceu, por comparação, ao nosso salvador da Eurovisão, que usa carrapito e tem aquela voz delicodoce e retorcida de pardalito implume.
Este mundo (editorial) definhou. Coisa que Saramago previu, no seu pessimismo ontológico, a propósito da morte do romance. Definhou sobretudo por duas razões, uma paroquial e outra cosmopolita. A paroquial é simples. Os editores começaram a publicar o sabor do mês, a jovem promessa, e os críticos a considerar génio todo o autor ignoto que não lhes ameaçasse a sapiência ou preponderância. O mundo literário povoou-se de nulidades que criaram a sua legião crítica.
Clara Ferreira Alves, in A Seita (Expresso, 7.4.2018).
2.
Estava portanto arrumada, por insuficiente, a hipótese etária, quando me recordo - maldita memória! - de um autor de nome minúsculo que confessou enervá-lo Herberto Helder; "por isso não está neste livro". E porque o enerva Herberto Helder, a ponto de eliminar do tal livro um texto em que o nome deste aparecia? O motivo veio nos jornais: "...Herberto Helder não era acolhedor. Cheguei a falar com ele por telefone umas duas vezes e até lhe bati à porta - teria uns 26 anos -, e falámos pelo interfone. Não abriu a porta nem me quis receber".
Ana Cristina Leonardo, in Primeiro foram as Padarias, depois foram as Livrarias (Expresso, 7.4.2018).
E, já agora, deixem-me meter a minha colherada!
3. Reparem-me nestes dois "tesourinhos deprimentes" que foram editados, tendo como títulos:
- 25 Gramas de Felicidade,
- O cancro não gosta de beijinhos,
por duas editoras(?) portuguesas, provavelmente ronceiras e muito mal amanhadas. Mais uma vez, por caridade, evito referir o nome dos autores de tais obras salvíficas.
Herberto Helder (1930-2015) terá guardado apenas 2 cartas, das que Ramos Rosa (1924-2013) lhe enviara. Este conservou, se não todas, uma grande parte da correspondência que H. H. lhe remetera. Algumas destas missivas constam da Colóquio-Letras (nº 196), saída recentemente.
Não me parece que a importância delas sobreleve o interesse de uma carta que Herberto Helder dirigiu a Eugénio de Andrade (1923-2005), e que eu arquivei no Arpose, em 22/11/15 (Herberto / Eugénio), mas, para quem se interessa por Poesia, vale a pena ler esta correspondência.
Tenho, para mim, que a velhice é, normalmente, mais do mesmo, passado. Ou como dizia o outro: é chegar ao fim do dia, e ver que nada aconteceu. Mas há curiosas excepções, mais raras ainda com artistas ou criadores. Estou a lembrar-me, por exemplo, de Herberto Helder que inflectiu, de forma poderosa, a sua poesia, nos últimos anos de vida. Menos, talvez Picasso, mas, com certeza, Matisse. Sá de Miranda é outro bom exemplo. Porque, na maioria dos casos, o que sobra é uma penumbra habituada, uma sombra pálida do que se fez, já sem o fulgor e pujança madura dos melhores anos. Como que uma desistência direccionada ao apagamento. Júlio Pomar disse, numa relativamente recente entrevista, que já andava cansado...
David Hockney (1937), que hoje faz 80 anos, é também um bom exemplo dessa vitalidade criativa que se renova, teimosamente, apesar da idade. Em 2012, em Colónia (Alemanha), tive a felicidade de ver uma exposição das suas últimas obras, que me surpreendeu pela frescura e qualidade estética, até mesmo, pela inflexão profunda do itinerário que tinha seguido até ali. É certo que ele tinha voltado à infância, voltara às paisagens juvenis da Inglaterra (East Yorkshire), onde tinha decorrido a sua adolescência, para pintar de novo. Alguns dos vídeos-instalações eram surpreendentes. E deixaram-me fascinado. Não os esquecerei tão cedo, como soberbas realizações de velhice ou maturidade tardia. E de apuramento estético, naquilo de que um criador é capaz.
É canónica e foi consensual a teoria de Leon Battista Alberti (1404-1472), durante muito tempo, para que o centro de um quadro organizasse os motivos de tal forma que obrigasse ou fizesse convergir o olhar do espectador para o tema central da obra. Muito poucos pintores, e ainda assim muito raramente, desafiaram esta teoria sobre a perspectiva, ou "desmanchar(am) a regra" - como disse, em verso e muito bem, o meu amigo António.
David Hockney tem, presentemente, no Centre Pompidou, uma exposição das suas obras, patente ao público até 23 de Outubro de 2017. A propósito da mostra, concedeu a Le Monde (22/6/2017) uma interessante entrevista em que explica a sua glosa (Annonciation 2) sobre o quadro de Fra Angelico (1395-1455), "A Anunciação a Maria", pintado em 1437. Recriando o interesse do presumível espectador pelo lado esquerdo, onde acrescentou uma paliçada diferente, e pelo lado direito, com o negro da noite. Por outro lado, modificou a posição da paliçada, de modo a alargar o campo de visão do observador. Levando-o para outros caminhos. A geometria do quadro de David Hockney é também totalmente diferente da de Fra Angelico, et pour cause...
Hockney refere também na entrevista que o que vinha pintando, natural e inconscientemente, numa tendência de inversão das perspectivas, se lhe esclareceu com a leitura da obra de Pavel Florenski (1882-1937), "A Perspectiva Inversa", em que o teórico russo advogava uma concepção da pintura totalmente contrária às ideias renascentistas do italiano Leon Battista Alberti. Daí os seus vídeos- instalações dos últimos anos, que, pelo seu movimento contínuo, obrigavam à participação acompanhada do olhar do observador.
Terminemos com uma nota mais ligeira, e de humor, de David Hockney que, quase no final da entrevista a Philippe Dagen, em Le Monde, afirma:
"Sim, eu sou um pintor feliz, e continuo a fumar. Na minha idade, não faria muito sentido parar: já não arrisco grande coisa. Sabe o que dizem na Califórnia? Que a opção, em breve, será entre fumar e a imortalidade. A imortalidade..."
Recebido hoje, da Livraria Ecléctica (à Calçada do Combro, Lisboa), o catálogo XVI, correspondente ao presente mês de Abril de 2017. Do conjunto de 328 lotes propostos para venda, por gosto pessoal, destaco os 4 seguintes livros e respectivos preços de venda:
Lote 15 - Eugénio de Andrade - Mar de Setembro (1963)....................... 45 euros.
Lote 135 - Herberto Helder - Edoi Lelia Doura (1985)........................... 75 euros.
Lote 251 - Raul Rêgo - História da República (1986)............................. 85 euros.
Lote 265 - Mário Sáa - As Memórias Astrológicas de Camões (1978)..... 28 euros.
Quando, em Dezembro de 1963, a Portugália fez sair, na sua prestigiada colecção Poetas de Hoje, os Poemas de Edmundo de Bettencourt (1889-1973), o poeta madeirense não seria conhecido de muitos leitores portugueses. O seu nome, um pouco a exemplo recente de Bob Dylan, era mais reconhecido como cantor, nesse particular, de fados de Coimbra. As Saudades de Coimbra, de sua autoria, e Samaritana eram gravações de êxitos que lhe estavam associados.
Mas o elogioso prefácio (Relance sobre a poesia de Edmundo de Bettencourt), de Herberto Helder, com um apologético apoio e explicação dos singulares Poemas Surdos, contribuiram para que o livro fosse procurado e se esgotasse. A insularidade de ambos os poetas talvez explique esta aproximação, à partida, pouco provável.
Afora poesias avulsas, esparsas e intermédias publicadas em revistas, Edmundo de Bettencourt fora colaborador (e, depois dissidente, com Torga e Branquinho da Fonseca) da revista Presença e publicara apenas e sob a chancela deste movimento, 33 anos antes, um único livro de poemas intitulado O Momento e a Legenda (1930). O meu exemplar, adquirido não há muito tempo num alfarrabista de Lisboa, fora dedicado a Mário Coutinho (1899?-1984) e incluia, solto, também um poema passado à máquina, assinado, que teria sido publicado na Revista de Portugal, segundo indicação manuscrita de Edmundo de Bettencourt.
Não ficaria de bem comigo se não juntasse, a este poste, uma das gravações, antigas, do poeta-cantor de Coimbra, pese embora a deficiente gravação do fado conimbricense que, para mim, é um dos mais bonitos que conheço. Talvez valha a pena informar que o fado "Samaritana", em causa, no período do Estado Novo, era proibido, pelo tema provavelmente beliscar a moral católica. Pude, no entanto, ouvi-lo, na República Baco, clandestinamente e entre amigos, no início dos anos 60, em Coimbra. E aqui fica ele, pela voz de Edmundo de Bettencourt. Que era também poeta. Como o Bob Dylan.
Raros são os artistas que, depois dos oitenta anos, conseguem produzir obra de alta qualidade. Estou a lembrar-me de Herberto Helder. E de Leonard Cohen...
E em jeito de bónus, aqui fica, traduzido, um pequeno excerto da última carta que LC enviou a Marianne, pouco antes dela morrer:
Chegou o tempo em que somos verdadeiramente velhos e os nossos corpos se partem aos bocados, e eu creio que te vou seguir em breve. Mas fica a saber que estou próximo de ti, que te estendo a minha mão e que tu podes tocar a minha.
Mais tarde ou mais cedo, uma, ou outra vez, há versos de um poema que vêm ter connosco.
Não falo do "Dai-me uma jovem mulher com a sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela...", dezenas (?) de vezes citado pelos leitores preguiçosos ou críticos rasteiros de Herberto Helder. Para não falar do "...quando a alma não é pequena..." pessoano, abastardado pelos turistas da Poesia, pelos políticos ciosos de serem importantes e fingirem de cultos, e até mesmo pelos basbaques que não sabem dizer nada de seu. Eu queria significar outra coisa. Referir esse encontro íntimo e autêntico que, às vezes, acontece entre nós e um ou mais versos de um poema, de forma, que parece, absolutamente exacto e nosso, na sensibilidade. Por uma iluminação do espaço, ou da experiência, que se torna comum e verdadeira.
O poema "Nocturno de Veneza"*, foi-me recomendado por Eugénio de Andrade, pouco antes de aparecer na Colóquio Letras. Assim diziam os versos:
Pergunto se não morre esta secreta
música de tanto olhar a água,
pergunto se não arde
de alegria ou mágoa
este florir do ser na noite aberta.
Na altura, gostei do poema, mas não muito mais do que tantas outras poesias do Poeta. Estava ainda muito longe de o vir a viver e sentir, verdadeiramente. Passaram entretanto quase cinquenta anos, foi preciso eu defrontar-me com as águas do Sado, no Outão, para integralmente eu perceber essa música de tanto olhar a água. E fazê-la minha por inteiro.
* o poema veio a ser incluído, depois, em Ostinato Rigore, com o título "Nocturno da Água".
Para JQ, no seu Indícios, registando e agradecendo as suas palavras.