Mostrar mensagens com a etiqueta Antonio Gamoneda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Antonio Gamoneda. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Poema de Antonio Gamoneda (1931), em versão portuguesa



Existiam as suas mãos,
um dia o mundo fechou-se no silêncio,
as árvores, acima, eram amplas, majestosas
e todos nós sentíamos sob a nossa pele
o movimento da terra.

As tuas mãos tornaram-se suaves nas minhas
e eu senti a gravidade e a luz
e que habitavas no meu coração.

Tudo era verdade sob as árvores,
tudo era verdade. Eu entendia
todas as coisas, como se compreende
um fruto com a boca, a luz com o olhar.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Antonio Gamoneda (Oviedo, 1931)



Entra no teu corpo e a tua fadiga enche-se de pétalas. Latem em ti os animais felizes: música na
                                                                                                                        [margem do abismo. 
É a agonia e a serenidade. Ainda sentes como um perfume a existência.
Este prazer sem esperança, que significa finalmente em ti?
Será que vai cessar também a música?



Antonio Gamoneda, in Libro del frío (1992).
                                                                                                                                                      

sábado, 3 de abril de 2021

De Antonio Gamoneda (1931)



Alguém entrou pela memória branca no coração imóvel.

Vejo uma luz sob a névoa e a doçura do erro obriga-me a fechar os olhos.

É a embriaguês da melancolia; como aproximar do rosto uma rosa doente, indecisa entre o perfume e a morte.

...........................


Pus água e cinábrio no meu coração e veias

e vi a morte mais distante da púrpura.


Agora os meus olhos vêem no passado: grandes flores imóveis, mães

atormentadas por seus filhos, líquenes fertilizados de tristeza. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Da leitura 40



"... Estou a cismar em demasia, a afastar-me excessivamente daquilo que, de uma forma razoável, deve ser um relato. Tentarei justificar-me: a poesia é e está na minha vida. Em certa ocasião, cheguei a dizer que a poesia é literatura apenas acidentalmente, que se trata de uma emanação da existência. Em todo o caso, entendo que a poesia não é ficção. Deixo isto dito para aqueles que, não tendo entrado, talvez, na realidade que alberga a verdadeira poesia, a identificam, plenariamente, com a literatura e a ficção. A poesia é, em mim, e em muitos outros, naturalmente, uma componente da vida; é-o até em termos biológicos (a minha tensão arterial sobe em tempos de criação). Não há fantasia na inclusão do raizame da poesia nas memórias da minha vida."

Antonio Gamoneda (1931), in Um armário cheio de sombra (pgs. 58/9).

sábado, 7 de novembro de 2020

Últimas aquisições (28)

 


Será esta Patagónia de Bruce Chatwin (1940-1989) mais interessante que a de Luís Sepúlveda? Duvido, e até dizem que há alguma ficção entremeada por Na Patagónia (Quetzal, 2020), o que só corrobora o velho ditado: Quem conta um conto, acrescenta um ponto.



Pouco tempo depois, e para me iniciar na prosa de Antonio Gamoneda (1931), poeta espanhol que muito aprecio, adquiri Um Armário Cheio de Sombra (Almedina, 2020) deste vate nascido em Oviedo. Nem sempre os bons poetas escrevem prosa de qualidade, mas há honrosas excepções: Quevedo, J. Ramón Jiménez, Eugénio de Andrade, por exemplo.

A ver, ou melhor, a ler vamos o que se passa com Gamoneda...

domingo, 3 de maio de 2020

De Antonio Gamoneda, em versão portuguesa


Paisage


Vi
montes sem uma única flor,
lápides rubras, vilas
ermas
e a sombra que desce. Mas ferve
a luz nos espinheiros. Não
compreendo. Só vejo
beleza.
            E desconfio.



Antonio Gamoneda (1931), in Blues Castellano.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Antonio Gamoneda (1931)


A que cala e despreza; a que estende
as mantas, a madeira, e os sudários
sobre a vida; a que entende o gesto
dos que existem e não falam; esta
que adverte e que segue com as suas
grandes mãos o movimento da terra e fita
o próprio rosto da luz, esta é a velha
mãe do medo, a que espera e se cala.


Antonio Gamoneda, in Pasión de la mirada.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

De Antonio Gamoneda (1931), uma versão traduzida


Sábado

1.
O animal que chora, esse morou na tua alma antes de ser amarelo;
o animal que lambe as feridas brancas,
esse está cego de misericórdia;
o que dorme na luz e é miserável,
esse agoniza no relâmpago.

A mulher cujo coração é azul e te alimenta sem descanso
essa é tua mãe no interior da ira;
a mulher que não esquece e está nua no silêncio,
essa foi a música dos teus olhos.

Vertigem na quietude: pelos espelhos entram substâncias
corporais e as pombas ardem. Desenhas juízos e tempestades
e lamentos.

Assim é a luz da velhice, assim
a aparição das feridas brancas.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Em torno de uma fotografia


Por que se calam os poetas?
Eu diria que por várias razões, como dizia Camus, a propósito do suicídio, que ele apontava ter, normalmente, mais do que um motivo. Mas voltando à questão inicial, creio que os poetas emudecem por já ser ralo e intermitente o fiozinho de água que lhes resta (como disse, poeticamente, Vergílio Ferreira, por outras palavras), por amor ao silêncio (referido por Eugénio de Andrade, num arroubo confessional, em entrevista), mas por desencanto, também. E tão só pela simples desaparição física - método mais frequente e natural.
Pensei, hoje, em Antonio Gamoneda, em Echevarría, em Manoel de Barros, como poetas que me apetecia reler. Como poderia ter pensado em Sá de Miranda ou Ruy Belo. Porque me vão sempre dizendo coisas novas, apesar de os já ter lido muitas vezes. E também me lembrei de um Amigo.
A fotografia serviu apenas para fechar o círculo virtuoso.

para A. de A. M..

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Antonio Gamoneda (Oviedo, 1931)


Amor


A minha maneira de te amar é simples:
aperto-te contra mim
como se houvesse um pouco de justiça no meu coração
e eu ta pudesse dar com o meu corpo.

Quando desordeno os teus cabelos
algo de muito belo nasce das minhas mãos.

E quase não sei mais. E só aspiro
a estar contigo em paz e a estar em paz
como se isso fosse uma obrigação desconhecida
que às vezes me pesa demais no coração.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Antonio Gamoneda (Oviedo, 1931)


Adiós

Esta é a terra onde o sofrimento
é toda a medida dos homens. Dão-
-me pena os condes com o seu leal faisão
e os cobardes com o seu fiel lamento.
A beleza vai-nos servindo de tormento
e a injustiça vai permitindo o pão.
Um dia brindareis pelos que tenham
convertido a dor em fundamento.
Nós que vivemos para dar alcance
a tão imensa luz que não poderia
um deus olhá-la sem tornar-se cego,
ainda teremos que atingir o lance:
de atirar ao silêncio a agonia
como quem lança o coração ao fogo.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Um poema sem título, de Antonio Gamoneda


Consistência de fogo
sitiado pelo pranto.

Aquilo que primeiro se ama
são os olhos: porque incendeiam
com a sua luz a existência
reunida, olhando-se.

Mas a luz é uma causa
mortal. Ferido de transparência,
o meu coração oculta-se
e recolhe-se à beleza.

sábado, 4 de julho de 2015

Um soneto de Antonio Gamoneda (1931)


Aqui tive um amor, uma impura
floração de sangue enamorado,
mas do sangue mais desesperado
onde a luz não existe na sua treva densa.

Desapareces como um anjo; como a escura
dor da juventude; como um gládio
de amargura e de vento, derrotada
pelo ferro e a sede da ternura.

Em ti acaba a noite, e na tua margem,
a água amante e a paixão mordida,
e, na tua boca, a minha verdadeira.

Unicamente porque morre, canta
a minha palavra nua e retorcida:
em direcção a ti, como um punho, se levanta.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Mais 2 pequenos poemas de Antonio Gamoneda


As unhas de animais inexistentes arrancam os nossos olhos
aos sonhos.

É assim a noite.
...

Acerquei os meus lábios das tuas mãos, e a tua pele
tinha a suavidade dos sonhos.

Algo parecido com a eternidade roçou pelos meus lábios
um instante.

sábado, 20 de junho de 2015

De Antonio Gamoneda (1931)


Ah! Velhice sem honra. E os advérbios
que se me vão depositando pela alma.
( Lágrimas nos vasos proibidos,
borboletas ávidas.)

Sei da fúria de um pastor; que chega afastando os ramos
e já é de noite.
Os advérbios cansados
estão na minha alma.


Antonio Gamoneda, in Antología poética (pg. 151).

terça-feira, 9 de junho de 2015

Em exercício



Findo "Guerra e Paz", de Tolstoi, vão em curso as leituras, dos livros em imagem. Antonio Gamoneda (poesia), ficção (Hermann Broch) e história (A. Borges Coelho). Todos eles já iniciados. "A morte de Virgílio", do escritor vienense, é para ler na varanda a leste... Pelo seu peso, em volume e conteúdo.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Glosa


"...O mundo condena os mentirosos que não fazem senão mentir, até sobre as coisas ínfimas, e vai premiando os poetas, que só mentem sobre as coisas grandíssimas." 
Umberto Eco, in Baudolino (pg. 46).

Depois de Pessoa, é muito difícil dizer, ou mentir, melhor. Ruy Belo tentou, Gamoneda também, talvez com mais autêntica sinceridade, mas não foi longe. Sem o dizer, fazendo da mentira seu voto de castidade poética, Herberto Helder experimentou uma segunda via, com alguns resultados menores, embora de poesia maior. Os melhores poetas são, em última instância, grandes fantasistas, oscilando entre o malabarista talentoso da metáfora, e o mágico truque para consumo doméstico. Buscam um equilíbrio subjectivo por compensação externa. Por extremo, sendo bem sucedidos, conseguem criar uma nova linguagem. Ou uma outra realidade virtual, mas possível.
Se eu disser: o Polo Norte há-de vir a ser o sexto continente - talvez esteja a admitir uma verdade provável. Mesmo que esteja a mentir, no presente. Com o aquecimento global, esta constatação é, apenas, uma mentira menor. E sem grande qualidade poética.

domingo, 12 de abril de 2015

Gamoneda, ainda


Eram dias atravessados por símbolos. Tive um cordeiro negro. Não me lembro do seu nome e do olhar.

Ao vir para minha casa, as sebes definiam as veredas que, entrecruzando-se entre si sem levar a 
nenhum lado fechavam as minúsculas pastagens para onde]
eu queria levar o meu cordeiro. Eu brincava como se fosse a perder-me no pequeno labirinto, mas só
até quando começava a ter medo de entrar por mim dentro, como numa]
chaga do meu próprio ventre. Acontecia isso uma e outra vez; eu sabia que o temor me iria possuir, mas continuava a caminhar em direcção às pradarias.]

Finalmente, o cordeiro foi enviado ao matadouro, e eu aprendi que aqueles que me amavam também podiam decidir nas sentenças e administração da morte.]    


Nota pessoal: por uma vez - e porque é sempre redutor -, que se me perdoe dar a minha interpretação de leitura subjectiva deste magnífico poema de Antonio Gamoneda (1931) - : a perda da inocência.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Mais 1 poema de Antonio Gamoneda


El vigilante en la nieve (X)


Ia veloz por sobre as ervas brancas.

Um dia sentiu asas e parou a escutar
uma outra idade. Certamente que latiam pétalas
negras, mas em vão: viu os resistentes estorninhos
afastarem-se por entre os ramos afilados pelo Inverno

e voltou a ser veloz, e sem destino.