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segunda-feira, 2 de setembro de 2019

O lugar de João Guimarães Rosa


Desarranjar a língua tem as suas virtualidades novas, a quem lê. Cria outras aberturas ao real, através de junções, à partida, incompatíveis de palavras que não se adaptam de todo ao discurso clássico ou normal de todos os dias. Tal como acontece em poesia. Na poesia maior, evidentemente.

A releitura de Grande Sertão : Veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967) tem vindo a reforçar a ideia que eu já tinha da grande qualidade da sua prosa, sem esquecer todavia que o romancista brasileiro não será muito conhecido e apreciado em Portugal. Atente-se, porém, na riqueza sugestiva da sua prosa, por este breve excerto:

"... Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o hospício de dôidos, na capital, diz-se que lá ela foi cativa de comer, por armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho que foi bom. Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. ..."

( Grande Sertão : Veredas, pg. 48)

O livro (460 páginas) é um longo monólogo animado do jagunço Riobaldo que conta as suas perpécias e deambulações a um ouvinte não-interveniente. Três personagens ( Compadre Quelemém de Góis, Diadorim e o chefe do bando, Medeiro Vaz) têm destaque principal na narrativa, em que cada parágrafo funciona quase como um pequeno conto.
Para além de uma efabulação prodigiosa, com momentos próximos da prosa poética, o romance é pródigo em criação e re-recriação de palavras, mas também num léxico abundante de variedades botânicas e zoológicas brasileiras.
Em suma e na minha opinião, uma das obras maiores, em língua portuguesa, de todo o século XX.

sábado, 13 de abril de 2019

Fotografia e ficção, segundo W. G. Sebald (1944-2001)



São pouco mais de 5 minutos, em que Sebald explica como parte da fotografia para a ficção.
A entrevista, em vídeo, está legendada em castelhano o que facilita a compreensão de quem não entenda o inglês. Na sua simplicidade, é muito elucidativa.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Osmose 101


Já por aqui falei, abundantemente, do meu fastio pela ficção nos últimos anos. No presente, liminarmente excluo de compras ou leituras qualquer obra que se baseie em acontecimentos reais, até porque ainda privilegio, acima de tudo, os factos e a história, originais. E nem sempre gosto de ouvir uma narrativa repetida. Por excelente que seja a imaginação de um escritor, o que ele pode acrescentar são minudências, inverdades, rodriguinhos, palha... Ou, na melhor das hipóteses, uma perspectiva inteligente sob um outro ângulo, sobrando apenas o estilo, se for de qualidade. Da mesma maneira, quase, vejo a inutilidade, para mim nesta idade, do romance histórico, pelo muito que prezo a História. Por aqui passa, superiormente, a noção do Tempo. Que provavelmente, muitas vezes, utilizei no passado de forma perdulária em leituras inúteis, que a minha tenra ignorância protegia e a falta de sentido crítico, ainda desculpava.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Também tu, TLS?


Não há meio de escaparmos. Das agências de viagens ronceiras e clonadas nos objectivos, da publicidade de jornais e revistas estrangeiros, dos hippies serôdios com cães lazarentos e sujos, a pedir esmola por Lisboa, dos turistas-máquinas-fotográficas, dos paquidérmicos paquetes a inundar o Tejo...
Já só cá faltava o TLS, que também perdeu - ao que parece - a tramontana!?...

terça-feira, 8 de maio de 2018

História e ficção


Ainda não consegui reconciliar-me com a ficção. Tenho andado pelo ensaio, pelos livros de crónicas,  história, poesia. E ando a ganhar balanço para tentar, pela enésima vez, ler o À la recherche..., de Proust, na tradução de Mário Quintana, da Livros do Brasil, em sete volumes. Chegarei lá?
Entretanto, e de empréstimo, vou a meio de Um herói português - Henrique Paiva Couceiro (2006), de Vasco Pulido Valente. O autor, seria escusado dizê-lo, tem uma prosa apetecível. De bom ritmo, frase curta e sugestiva, português escorreito. Pena o livro não ter um glossário sobre termos africanos.
Convém lembrar que VPV colaborou no guião ou argumento de vários filmes portugueses: O Cerco (1970), Aqui d'El Rei (1992) e O Delfim (2002). O que talvez explique a sua tentação de ficcionista.
Daí, possivelmente, um episódio (pg. 14) picaresco, narrado por Pulido Valente, em que Paiva Couceiro terá disparado 5 tiros, no Chiado, contra um tal Luis León de la Torre Faria, só porque esse indivíduo o tivera roçado no ombro e lhe dirigira uma frase injuriosa.
Ao que parece, no entanto, a história real teria sido ligeiramente diferente. O Luís León dera um ligeiro encontrão na irmã, Carolina, de Paiva Couceiro e este, então com 19 anos, dera 2 ou 3 murros no atrevido, e não 5 tiros... Por isto foi julgado em conselho guerra e condenado a 2 anos de prisão.
Que lhe foram comutados e abreviados, pouco depois, por decisão superior.
De qualquer forma, não convém baralhar história com ficção.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Ficções


É ponto assente, na opinião da crítica inglesa, que, a partir da I Grande Guerra e, com muito maior intensidade, a partir do final da II G. G., o cenário da ficção britânica passou a ser mais citadino, quando, anteriormente, tinha um predomínio campestre. A transumância das populações para as cidades, com a Revolução Industrial, foi apenas o início de um processo, que a ficção, e até mesmo a poesia, acompanharam de perto.



Em Portugal, Eça foi sobretudo um ficcionista de cidade, se exceptuarmos A Ilustre Casa de Ramires e o híbrido A Cidade e as Serras, mas quase toda a ficção camiliana é situadamente campestre, como grande parte da literatura portuguesa anterior. O Neo-realismo privilegiou largamente os campos (Redol, Manuel da Fonseca) e as zonas ribeirinhas ( Soeiro Pereira Gomes e Loureiro Botas) e, que me lembre, apenas Tavares Rodrigues e Namora (na sua segunda fase) se atreveram a devassar as ruas mais escuras e escusas da cidade. Ainda hoje, no entanto, Rentes de Carvalho e Riço Direitinho encenam as suas ficções campestres, em algumas obras.


Embora eu frequente, pouco e mal, a ficção portuguesa de agora, julgo que os cenários são, maioritariamente, citadinos. Passou o tempo de Aquilino, embora o Mestre tenha situado alguns dos seus romances em Lisboa. Como, de algum modo, Miguéis, mais cosmopolita, porém. A obra de Carlos de Oliveira divide-se, ambivalente. Mas, para os novos escritores, o cenário é urbano, até porque são, na maioria, citadinos os seus leitores e a vivência de ambos. E o regresso da alguns vegans aos campos e à natureza, bem como a fruste troca da cidade pelo campo, de alguns jovens casais idealistas, não irá alterar o cenário das ficções portuguesas - creio eu.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

As poucas certezas, que nos chegam de longe


Com os anos que levo, poucas certezas me assistem. Porque, se juventude é certeza (ligeira ou caprichosa, quase sempre), a velhice, na sua eventual lucidez, de experiência feita, é, sobretudo, terreno fértil de dúvidas. Humildemente humanas.
Eu teria muitas hesitações, se me perguntassem, de toda a Literatura (que conheço), qual o romance ou poema que prefiro. E considero como sendo o melhor, entre os melhores.
Mas, se me perguntassem, sobre o conto, ou pequena ficção narrativa, eu não teria dúvidas. Elegeria, categoricamente, esse pequeno (12 páginas), e enorme conto de Jorge de Sena (falei dele aqui, em 13/4/2010), sobre Camões, intitulado: Super Flumina Babylonis. Porque é toda uma vida.

para Margarida Elias que, com o seu comentário no Arpose, me suscitou estas pequenas reflexões. 

domingo, 17 de agosto de 2014

Personagens - a nitidez e a medida


Na ausência de feições visíveis ou de uma caracterização física e psicológica bem impressiva, num romance com grande número de personagens, o pobre do leitor (e muitas vezes isto me acontece) corre sempre o risco de se perder no labirinto, não conseguindo seguir, com precisão no fio narrativo, os nomes e as acções de cada um dos vários intervenientes, associadamente. Tudo, porque o autor não teve, talvez, nem a noção do equilíbrio, nem piedade para com o Outro - ser humano que o viesse a ler.
A maior parte das vezes, embora pareça ter o cuidado e a preocupação de nunca se exceder no número de figuras dos seus romances, Georges Simenon consegue que o leitor, son semblable, son frére, quase nunca se perca no enredo das suas obras. É essa - parece-me - uma das marcas de água por onde é mais simples reconhecer a qualidade e solidez de um bom ficcionista. Ou seja, não perder a noção real do mundo exterior que o rodeia.

terça-feira, 11 de março de 2014

História e ficção - algumas questões


Na esteira de Herculano, também Rebelo da Silva foi um romancista conceituado.
Será que a História exige, dos seus artífices, a criatividade da imaginação ou, pelo contrário, eles apenas devem obedecer a uma rigorosa neutralidade realista que os poupe ao desvario das efabulações?
Seja como for, creio que Alexandre Herculano e Rebelo da Silva foram os únicos historiadores portugueses, desde sempre e até há pouco, a dedicarem-se também à ficção. E nesta ambivalência será possível, num mesmo homem de letras, compartimentar rigorosamente a ficção, do rigor científico, no espírito humano?
Claro que há sub-espécies... De pretensos historiadores que efabulam sobre História, e até ganham bom dinheiro com isso, sem grandes preocupações de consciência.