terça-feira, 31 de agosto de 2010

Provérbios que o não foram



1. Os países pequenos limitam os horizontes das suas criaturas.
2. O Norte sonha com o deserto, o Sul com a neve.

Salão de Recusados XXIII : A Fénix Renascida (2)


A fragilidade da vida humana

Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido:
Esse farol nos Céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado:
Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido:
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave em doce agrado:
Se a nau, o sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago:
Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.

Francisco de Vasconcelos


A F. que comia barro

Dizem-me que estais doente
De doença tão pesada,
Que por ser de barro é nada,
E só no peso se sente:
Crede-me que estou contente,
Pois quando a Terra comeis,
Mais eterna vos fazeis,
Pois se a terra os corpos come,
E se a comeis vós com fome,
Quem vos coma não tereis.

Jerónimo Baía

Revivalismo Ligeiro XXII : Alain Barrière

Agosto : em louvor e despedida


Onze meses eram sempre determinados, previsíveis, carregados de obrigações, por entre o granito e o cinzento, a chuva e a pedra lavada. É certo que o sol brilhava muitas vezes, de forma inesperada, às vezes, duradoura.
Mas Agosto sempre foi luminoso, e abria, ciclicamente, uma clareira de leveza e aventura - nem sempre realizada.

P.S.: para HMJ, que gosta, particularmente, desta fotografia.

Nunca é demais lembrar


Eros

Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes.

Eugénio de Andrade (1923-2005), in Mar de Setembro.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A curva perigosa


O Artur chegou cedo mas, para nossa surpresa, vinha acompanhado por uma daquelas gordas fadas loiras de leste, com límpidos olhos azúis, que já arranhava o português. Irina Miloslavskaya, segundo o cartão de visita marmoreado e perfumado que nos deu, pouco depois, no restaurante. Optamos pelo "Porto de Abrigo", que era ali à beira. O Pedro Tamen abancou, dez minutos passados, na mesa ao lado. Artur pediu as habituais pescadinhas de rabo na boca, nós fomos no pato assado, e Irina optou por uma frugal salada. Ficamos a saber que a gorda fada loira emigrara, de início, para as limpezas portuguesas mas, rapidamente e com a equivalência dada pelo Conservatório, reiniciara a sua carreira de violinista, a recibo verde, numa das nossas melhores orquestras. Onde, aliás, Artur era um dos pianistas principais. Fez questão de mostrar o anel de safiras - sinal de promessa auspiciosa deste relacionamento de grande afinidade musical. Ficamos comovidos. Seria que o Artur ia atinar, finalmente?
Mas, à sobremesa, desiludimo-nos. O nosso amigo pianista tinha planos grandiosos a médio prazo em que, temporariamente, Irina não entrava. Recém-chegado de Macau, onde conhecera Jennifer, americana de 32 anos, Artur combinara, dentro de um mês, encontrar-se com ela em Dallas e fazerem, em romagem saudosa, num velho Buick da jovem americana, o percurso de Kerouac, pela estrada fora. Eram ambos devotos da "beat-generation" e Artur, que completara os 47 anos, queria experimentar as sensações desse deambular aventureiro. Irina estava de acordo e ficaria à espera, em Portugal, como boa Penélope. Achava que era uma espécie de despedida de solteiro que, intimamente, não desaprovava.
Ficamos preocupados, mas sabia que seria inútil demovê-lo - eu conhecia bem o Artur. Despedimo-nos, junto do Mercado da Ribeira: cheirava a maresia.
Em finais de Agosto recebi, de Phoenix, um telegrama do meu amigo pianista que me pedia para o ir esperar ao aeroporto da Portela, dois dias depois. Lá fui. Mas não o reconheceria, se ele não tivesse gritado o meu nome. Vinha muito bronzeado, vestido à "cowboy" e com um enorme chapéu branco de abas largas, do faroeste americano. Botas altas, lenço vermelho ao pescoço: fiquei estarrecido, mas Artur estava bem, embora excessivamente eufórico para o que lhe era habitual. No carro em que o levei para Oeiras, foi-me contando as peripécias do seu sonho americano realizado. Também me informou que Irina não conseguira esperar por ele, e ia casar com um marialva ribatejano. Ia dedicar-se, com o futuro marido, à criação de cavalos e produção de vinhos. Largava de vez o violino. E ele, Artur, tinha um projecto grandioso. Ia abandonar o meloso do Chopin e dedicar-se, de alma e coração, ao Liszt. Como ele tinha os dedos compridos, achei bem e fiquei muito contente.
Hoje, porém, passados mais de 10 anos, e quando oiço o Paco Bandeira a cantar "A ternura dos quarenta", pergunto-me se não seria mais sensato dizer: a loucura dos quarenta - porque me lembro sempre do Artur.

Madrigal - King's Singers

Bibliofilia 27 : Sá de Miranda



"As Obras do Doctor Francisco de Saa de Miranda...", de 1614, editadas por Vicente Alvarez, em Lisboa, constituem a segunda impressão da obra do Poeta do Neiva, mas diferem, grandemente, da primeira, de 1595, coligida por Manuel de Lyra. É nesta 2ª impressão que aparece, pela primeira vez, a "Vida do Doutor Francisco de Sá de Miranda". E apresenta, em muitos dos poemas, variantes substantivas em relação à edição de 1595. A edição de 1614, em apreço, é considerada muito rara.
O meu exemplar foi comprado, em Abril de 1993, no leilão "Silva's/Pedro de Azevedo" (lote 437), por Esc. 61.380$00 (cca. 307,00 euros). O livro está fortemente afectado pela traça nas primeiras e últimas folhas, embora muito bem restaurado. É um exemplar de trabalho, com algumas anotações manuscritas, nas margens. E tem uma encadernação a imitar pergaminho, com ferros a ouro.
Anteriormente, em 1988, um exemplar em melhor estado fora vendido, também pelos "Silva's" por Esc. 320.000$00. E, no mesmo leilão em que comprei o meu exemplar (1993), um outro, em muito bom estado, atingiu o preço de Esc. 330.000$00 (euros 1.650,00). Nos últimos 15 anos, não me dei conta de mais nenhum exemplar da edição de 1614, que fosse posto à venda.

domingo, 29 de agosto de 2010

Revivalismo Ligeiro XXI : Charles Aznavour

Porque sempre gostei de Aznavour, e o mês de Agosto está a acabar.

Favoritos XXXIV : Alan Brownjohn


Já aqui falei do poeta inglês Alan Brownjohn (1931), e lhe traduzi um poema, no Arpose, em 26/5/2010. Na poesia britânica do séc. XX, é um dos meus predilectos. Os seus poemas ilustram bem esse lado descritivo ou narrativo, característico em grande parte da poesia inglesa do último século. Esse registo realista não exclui, porém, outras suprarrealidades. O real é muitas vezes um ponto de partida irradiante. Como neste poema, "The Situation", que passo a traduzir.

Ora aconteceu que as primas não vieram
E assim nunca soubemos como eram.
Nunca iniciaram o passeio que havia de trazê-las
Até aqui, para junto da fonte impetuosa, ou
Para que segurassem a cerca nas suas mãos adultas.
Este jardim não pode ser lembrado sem o seu riso,
Por isso elas são ainda uma possibilidade:
Depois de nos desiludirmos dos homens,
Dos cães e das viagens, da própria imobilidade,
Das nossas cadeiras de braços viremos a saber
Que nos restam as primas; que, nesse dia, deviam
Ter vindo e não vieram, mas que estão lá ainda.

Memória 37 : Ingrid Bergman

Da claridade de "Casablanca" ao Inverno de Golda Meir, passando por Bergman e a "Sonata de Outono", Ingrid Bergman, nascida a 29/8/1915, deixou um rasto luminoso inapagável.

Um pequeno "intermezzo" para começar esta noite de Verão

Louis Couperin, nascido em 1626, morreu a 29 de Agosto de 1661.

sábado, 28 de agosto de 2010

Jogos Infantis 7 - Croquet de mesa


O nosso Croquet é, apenas, um jogo de mesa, podendo participar até 6 jogadores. Como se pode ver pela imagem abaixo, o jogo está incompleto, faltam-lhe as bolas que o tempo levou.
Numa tarde de canícula, como a de hoje, sugere-se que se monte uma mesinha debaixo de uma árvore, numa relva resfrescante.
E, assim, "a todos os jogadores a MAJORA deseja horas de prazer."


Post de HMJ

Recomendado : Dois - The Dead (Dubliners)


John Huston que morreu em 28/8/1987, traduziu em imagens (e palavras), de forma admirável, Malcom Lowry (Debaixo do Vulcão), com o contributo imprescindível de Albert Finney, na figura do cônsul, e Hermann Melville (Moby Dick), com a importante ajuda de Gregory Peck. Mas num mimetismo fora do vulgar, conseguiu clonar, de forma excepcional, o conto "The dead", da colectânea "Dubliners", obra- prima de Joyce - na minha opinião. É toda uma vida, o monólogo final deste conto, e deste filme.

A Felicidade na Catedral


Evito as grandes superfícies. Sobretudo as desta Las Vegas suburbana. Alguém faz o favor de cumprir, por mim, a obrigação cristã, e semanal. Evito porque, no passado, já dei para o peditório - por necessidade -, e por temperamento. Afasto-me o mais possível destas excursões de fim-de-semana, até gratuitas no transporte, em direcção a estas catedrais de consumo, preferindo-lhes os pequenos oragos, ou capelinhas de bairro, mais rústicas, personalizadas por curas ou curadores, ou merceeiros com gosto, que escolhem a dedo, e em minudência, os artigos que irão pôr à venda para os seus fregueses. Lá encontro o requeijão perfeito, o figo de mel anónimo, o vinho puro e duro de um produtor desconhecido e de pequena produção. O pêssego antigo, com o raro sabor e gosto de infância. É que as grandes superfícies compram a fruta, ainda em pomar - para quem não saiba...
Mas, hoje, não o pude evitar. E lá fui cumprir o santo sacrifício... Carros ajoujados de sumos, monstruosas embalagens de bolos industriais, grades de cerveja deslizam pelos corredores para matar esta fome e sede de séculos de privações e desejos não satisfeitos no ADN português milenar. São conduzidos, normalmente, por criaturas obesas, em traje de praia, transpiradas e decotadas até onde é legítimo e permitido numa catedral. Criaturas com um sorriso estampado no rosto, beatíficos senhoritos, felizes, de quem foi à missa e vem, de regresso, reconciliado com deus, com os semelhantes, e com o mundo. Ámen.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Queda de cadeiras : 2 Antónios, e eu


É sempre um facto acidental, inesperado, quase inacreditável acontecer. Muitas vezes, ridículo e hilariante. A primeira queda de cadeira, que vou referir, prejudicou-me um pouco. Era eu aspirante miliciano no BRT (Batalhão de Reconhecimento e Transmissões) da Trafaria. Estávamos em Setembro de 1968, e António de Oliveira Salazar caíu da cadeira, no Forte do Estoril. Não pude regressar a Lisboa, o quartel entrou de prevenção, e o País tremeu. Tive que desmarcar compromissos que tinha para essa noite...
A segunda queda de cadeira aconteceu comigo. Foi aqui pela zona outrabandista, e quase em família. Tinhamos ido almoçar ao ar livre, num restaurante modesto e honesto, mas onde grelhavam peixe muito fresco, com desvelo e sabedoria. Era o Verão de 87 ou de 88. Às tantas, o António, que estava connosco, grita-me: "Olha que estás a cair!?..." Eu não acreditei, era lá possível uma cadeira com estrutura interior de ferro (só que já estava enferrujada), embora com cobertura de plástico, desfazer-se de um momento para o outro?...Mas sentia-me a deslizar, suavemente, em direcção à terra. Não fiz nada e, ao "ralenti", passado um minuto, estatelava-me no chão. Não parti nada, a não ser a cadeira...
A terceira queda é mais académica. Aconteceu com o António Valdemar (a memória humana mais prodigiosa que conheço) e que é, hoje, Presidente da Academia de Belas-Artes. A história contou-a ele na Rua do Alecrim, nº44, em Lisboa. Terá sido nos anos 90. António Valdemar tinha acabado de receber uma comenda, creio que a 10 de Junho. Dirigiu-se para a sua cadeira, no meio dos agraciados. Sentou-se, e a cadeira desfez-se - caíu desamparado. Ajudam-no a levantar-se e perguntam-lhe, preocupados, se se magoara. Confundido e atónito, Valdemar responde: "Foi o peso da Glória!"

Filatelia I : o princípio


Gravo, para memória futura, que o início da minha colecção de selos data dos meus nove anos de idade. Se não tiver sido assim, a verdade e a data andarão por perto. E, é essa, pelo menos a referência objectiva que tenho: compraram-me o primeiro catálogo, nesse ano (ou no anterior) - Catálogo do Mercado Filatélico de 1953.
E foi a Nini (não a do Paulo de Carvalho!) que me passou o gosto. Era a mais velha das meninas Coelho, que moravam na minha rua. E a casa onde viviam, alta e matriarcal (5 contra um Pai). Desde muito pequeno, sempre lá me senti bem-vindo. Eu era uma espécie de mascote masculino num universo, marcadamente, feminino. Deixavam-me ler as revistas brasileiras do Capitão Marvel (Shazam!), contavam-me histórias, davam-me rebuçados, mostravam-me o fabuloso sótão (que a minha casa não tinha), e também brincavam comigo no quintal que tinha um baloiço vermelho enorme para a minha pequena altura.
Os primeiros selos que tive, foi a Nini quem mos deu, dos repetidos que tinha na colecção dela: de Portugal, da Polónia e da França. E foi por aqui que eu comecei a gostar, particularmente, dos selos gravados portugueses e dos talhe-doce franceses, que eram uma fascinação visual, para mim. Ainda hoje são, embora, pelo custo da produção, sejam raramente feitos por esse processo delicado. Também me lembro ainda como arranjei ou comprei alguns, ao longo da minha vida de filatelista amador. Porque os grandes filatelistas têm nome conhecido: Brigadeiro Cunha Lamas, A. H. de Oliveira Marques, C. George...
Mas é melhor começar pelo princípio, e reproduzir alguns exemplares da minha colecção. À cabeça, o 25 réis D. Maria II (que com o 5 réis foram os primeiros a ser emitidos) de Julho de 1853. Segue-se, à sua direita, o 100 réis, lilás, de D. Pedro V. Os restantes são já todos de D. Luís. De início, os selos eram cortados da folha, à tesoura, daí terem tamanho de margens muito variado. O denteado, que facilita a separação, só veio a ser utilizado, pela primeira vez, na emissão de D. Luís, fita curva, de 1867-70.

P.S.: este poste responde a ms que, há uns meses, me perguntou porque não falava de filatelia, no Arpose. Disse-lhe, na altura, que era um nicho cultural que interessava a pouca gente. Mas também é verdade que a filatelia se entrelaça na minha vida. E é, muitas vezes, um calmante natural. Por isso, hoje, não resisti, ms.

No aniversário de Cesária Évora


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Se não é música clássica, o que será? Ligeira não é...

Para quem goste, não perca: RTP2, 23,29ms....de vez em quando vem um cheirinho de serviço público...

José Moreno Villa


José Moreno Villa nasceu em Málaga, em 1887, licenciou-se em História, foi pintor, poeta da geração de 27, crítico de Arte, e desempenhou cargos de representação para o Governo da República Espanhola. Em 1937 fixa-se no México, onde vem a morrer, em 1955. O poema, que traduzi, pertence ao livro "Carambas", publicado em 1931.

Descobri a simetria
raíz de tanta iniquidade.

Mas os mais serenos estão surdos
e às duas da manhã é profunda a fissura do mundo.

A quem pedir ajuda?

Não há morcegos neste povoado
nem bebedores de limonada.

Por isso os palácios ficam incólumes
e no alto da coluna,
coleante, se meneia a desvergonha.

P.S.: devo confessar que fui um pouco libertário, ao traduzir. Que o Moreno Villa me perdoe!...

Comic Relief (6) : minimalismos...

P.S.: para ms.

O que é um clássico? (2)


Já aqui no Arpose apareceu esta interrogação (19/2/2010) a que George Steiner respondia. Desta vez, responde Pierre de Boisdeffre (1926-2002), francês, escritor, estudioso da literatura, e diplomata. A citação é retirada do seu livro "Métamorphose de la Littérature" (marabout université, 1973). Segue:
"Com Proust, Claudel e Valéry, que são, sem dúvida, os nossos últimos clássicos, se se entender por clássicos os homens que dão tanta importância ao seu estilo como à sua experiência, e que ordenam a sua obra em função da ideia que eles têm da arte, em oposição às modas e necessidades dos seus contemporâneos."

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Revivalismo Ligeiro XX : António Variações

É o terceiro Português do "Revivalismo Ligeiro", e acho que bem o merece.

Antonio Machado : Provérbios e Cantares


XXIX

Caminhante, as tuas pègadas
são o caminho,mais nada;
caminhante, não há caminho,
faz-se o caminho ao andar.
Ao andar se faz caminho,
e, para trás, ao olhar
vemos veredas que nunca
se hão-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho
senão os sulcos no mar.

Robert Schumann : Opus 94

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O castanheiro de Anne Frank, como motivo


O "Diário de Anne Frank" publicado pelo pai, em 1947, que foi o único sobrevivente da família - morta em campos de concentração - , foi um livro de leitura transversal a muitos jovens, e das obras mais traduzidas no mundo. Em Portugal, traduziu-o Ilse Losa, para a Livros do Brasil.
Na ausência de notícias mais importantes, o jornal "Público" de hoje, na última página, destaca e refere a morte definitiva e queda, motivada por uma tempestade em Amesterdão, do castanheiro secular que Anne Frank, quando escondida com a família, num sótão, para escapar aos nazis, via da sua janela. Fala dele, aliás, algumas vezes, no seu diário ("O castanheiro está coberto de flores e acho-o ainda mais belo do que no ano passado", 13/5/1944). Na sua existência limitada e claustrofóbica, em plena adolescência, era um sinal de beleza e mudança.
As árvores foram sempre portadoras de esperança, tiveram valores simbólicos e eram, muitas vezes, sinal de estabilidade e permanência na mudança (vida/morte), ao olhar humano, e apoio à imaginação devota. Da árvore de Jessé à figueira de Judas, do carvalho de Guernica (que inspirou a Wordsworth, em 1810, um poema: "Oak of Guernica! Tree of holy power..."), resistente ao bombardeamento de 1937, até à oliveira da Colegiada de Guimarães; do olmo de Antonio Machado ("Al olmo viejo hendido por el rayo / y en su mitad podrido...") à azinheira de Fátima, as árvores perpetuam-se no coração dos homens. Ou na adolescente e vibrante esperança de Anne Frank. Mas os homens envelhecem e morrem, algumas árvores conseguem ser centenárias e, mesmo, milenares. Parecem eternas aos homens, ou para usar palavras e lembrar Sá de Miranda:

"...Eu vira já aqui sombras, vira flores
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d' amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores;
e tudo o mais renova: isto é sem cura."

P. S.: para c. a., que anda a reler Sá de Miranda. E faz muito bem.

Leituras Antigas XIII : Colecção Epopéia (brasileira)



Parente sénior (em tamanho) das colecções "Pequenina", "Misterinho" e "Edição Maravilhosa", a "Epopéia" era publicada, também, pela Editora Brasil-América Limitada, do Rio de Janeiro. As capas, interessantes, eram da autoria de Antonio Euzebio, como as anteriores. As revistas apresentavam, na última página, biografias de "Pioneiros da Ciência", no caso concreto destes 2 números: o norueguês Amundsen, explorador do Polo Sul, e o alemão Froebel, pedagogo. A contracapa tinha reproduções de pintores brasileiros. A "Epopéia" tinha números normais que custavam 7,00 cruzeiros (1955) e números com bastantes mais páginas, ditos "Edição Especial", ao preço de 15,00 cruzeiros (1956). Só encontrei dois números na minha posse, mas creio que tive mais. Perderam-se, talvez, na voragem do tempo ou nas mudanças.

Telemann : Concerto para oboé

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O monólogo absoluto, a solidão inteira


Ponho os pés descalços na tijoleira fresca da varanda a leste: o monólogo absoluto, a solidão inteira. Sem poesia maior ou menor, a terra no seu esplendor mais íntimo, ou o barro mais simples e concreto - chão. Por momentos, o que me sobe ao corpo é puro e intenso.
O "aladino" madrugou, esta noite, enganado pela escuridão que veio muito cedo. E pelas nuvens cerradas que cobrem a lua (cheia?). Mas que frescura sobe do chão!...
No entanto, estes chuviscos são ameaça de Outono, certeza de Inverno. E Agosto ainda não acabou. Subitamente, o céu começa a limpar. O azul, desbotado e tímido, reabre, rasgando o cinzento. E a lua, cheia, aparece. São 20,46. Amanhã, veremos. Pouco a pouco...

P.S.: para JAD, hoje, por razões que deve entender.

Mercearias Finas 14 : Luís Pato


Estávamos na Bairrada profunda, entre estreitos e labirínticos caminhos, por entre médias e pequenas propriedades, que levavam a outros labirintos. Finais dos anos 80, ou início dos 90. Devíamos ter almoçado no "Vidal", modesta catedral gastronómica, onde ainda hoje se pode comer um dos melhores leitões assados da Bairrada; ou, é possível, que tivessemos ido almoçar ao "Almas(?) da Areosa", em Aguada de Baixo, comer uma deliciosa "Vitela à moda de Lafões", em caçarolas de barro. Este restaurante, que era de um ex-emigrante, está, hoje, fechado. Pena! O que ali me levava era um "Vinhas Velhas 1986", tinto, Baga monocasta, que o arquitecto Raúl Ramalho, na altura decano dos arquitectos portugueses, e pai do Pedro Chorão, me oferecera pelo Natal ou pouco depois. E eu, que nem era grande apreciador dos vinhos bairradinos, tinha ficado conquistado com aquele "Vinhas Velhas", criado - como ele gosta de dizer - por Luís Pato. O engenheiro e enólogo era já conhecido (mas não muito) dos apreciadores sensíveis e de bom gosto. Ainda a adega não era aquela estrutura nova de qualidade arquitectónica dos nossos dias, nem a promissora énologa Filipa Pato, sua filha, lançara algum dos seus "Ensaios" vínicos. Quando, finalmente e depois dos labirínticos caminhos, conseguimos chegar a Ois do Bairro, e à fala com Luís Pato, já o sol começava a declinar - era Outono. Atirei-lhe à queima-roupa com o "Vinhas Velhas 1986", e ele mostrou-se surpreendido - não achava que fosse um vinho fora do vulgar. Mas também já não tinha nenhuma garrafa para vender. Deu-me sugestões. Depois levou-nos à adega: provou alguns vinhos de enormes tonéis, e deu-nos a provar. Em seguida, para a compra, levou-nos até à loja de embalagem, onde cinco ou seis mulheres colavam, à mão, os rótulos nas garrafas. A supervisão deste grupo feminino estava a cargo da mãe de Luís Pato que, vitoriana e sentada, acompanhava com o olhar, agudo e penetrante, o trabalho da rotulagem. Tudo isto, num velho armazém, que não tinha nada a ver com a moderna adega de hoje, muito embora o Engenheiro-enólogo já exportasse grande parte da produção para a Inglaterra e para o Japão - disse-nos ele.
Depois, havia de vir o "Vinha Pan", o "Vinha Barrosa", o "Vinha Formal" e outras criações excelentes deste "grand seigneur" do vinho português.
Cavalheiresco, sempre, embora conservasse a distância e reservasse o sorriso, guiou-nos, no seu carro, à frente, até que saíssemos dos caminhos labirínticos e chegassemos à auto-estrada. Despediu-se, ao passarmos, com uma breve vénia que escondeu, por momentos, o seu bigode asa de corvo, já ligeiramente ensaraivado.

Recomendado : Um


Confesso que, em poesia, só há três autores (afora os amigos) vivos de que compro, sem hesitar, qualquer livro que saia: Gastão Cruz, Fernandes Jorge e António Osório. Dos outros, mais novos, abro o livro, na livraria, leio 2 ou 3 poemas, e faço o meu juízo: compro ou não. Destaco dos mais recentes, apenas um nome: Tolentino Mendonça. De que aprecio alguns títulos, mas não todos.
Mas, ontem, ou porque estivesse mais benevolente e heterodoxo, à noite, na FNAC, comprei 4 livros. E quero destacar um nome e um título de cuja autora nunca tinha lido nada: Renata Correia Botelho (pelo apelido, bem pode ser açoreana) e o seu livro "Um Circo no Nevoeiro" (Ed. Averno, 2009). É uma poesia despojada de artifícios, mas intensa, na sua concisão e brevidade. Deixo um poema ( mas há vários, no livro, merecedores do meu destaque), para que se fique com uma ideia da qualidade da poesia de Renata Correia Botelho.

"falhamos tudo: entregámos
os livros ao sepulcro
das estantes, ao amor

demos o colo de horas
certas, deixamos de abrir
janelas para cheirar a noite.

já nada nos lembra
que o poema só se forma
no fio da navalha."

domingo, 22 de agosto de 2010

(Re-re)vagar Português



Em 27 de Julho de 2010, no poste "Vagar Português" referi, aqui, que o penúltimo lanço de escadas rolantes, que vai dar ao Largo do Chiado, estava avariado e parado, havia cerca de um mês. A 6 de Agosto reincidi (Re-vagar Português) pela situação se encontrar, exactamente, na mesma. Hoje, igual : "Tudo como dantes, Quartel-General (Administração) em Abrantes..."
Não consegui saber o nome do Chefe da Estação da Baixa-Chiado do Metropolitano, embora o Segurança, Sr. José, tenha sido urbano, simpático e informativo,q.b.. Há três turnos de Seguranças, diariamente, que fazem relatórios três vezes por dia, onde referem, sistematicamente, que o 4º (é assim que o identificam) lanço de escadas rolantes está avariado.
E...Nada!?
Passemos aos galãs, ou actores principais, a digníssima Administração do Metropolitano de Lisboa, que é constituída por:
1. Presidente do Conselho de Administração - Engenheiro Francisco J. Cardoso dos Reis;
2. Vogal - Engenheiro Carlos José Bento Nunes;
3. Vogal - Engenheiro Jorge Manuel Quintela de Brito Jacob;
4. Vogal - Dr. Luís Miguel Silva Ribeiro;
5. Vogal - Dr. António Gregório Ventura.
Descontando o quarto e quinto vogais , mesmo assim ficam 3 Engenheiros . Será que nenhum deles sabe como consertar escadas rolantes? Valha-me deus!... Se calhar, o melhor é mandar chamar a TVI. Ou o Ministro dos Transportes e o seu electricista de confiança...
P.S.: em relação ao meu poste de 6 de Agosto, as lâmpadas continuam fundidas. Será que não podiam pôr uns candelabros, como no Metropolitano de Moscovo: devia ficar bonito! Ou, se não houver dinheiro para tanto, comprem umas velas coloridas, ali, no cerieiro da Rua do Loreto - fica perto...

Revivalismo Ligeiro XIX : Domenico Modugno

Era um tempo (explicação para os mais novos) em que os sentimentos se expressavam de uma forma um pouco dramática, mas sincera - no registo pessoano do termo. Vieram, depois, os anos 60, mais ligeiros, mais promíscuos, descomprometidos, experimentais... Depois os setentas, neo-renascentistas, recuperadores, mas apaixonantes com o 25 de Abril. Nos 80 voltou-se ao classicismo, a algum pragmatismo sólido, quase realista e sério. Há, depois, a perigosa curva dos quarenta, na minha geração ( e de que fala o Drummond). Agora, já não sei... "oliveira da eurídice", ms, não querem ajudar com um comentário?

Citações XLII : José Cardoso Pires


"...Sei, todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô-lo. É um eco a sublinhar as palavras, uma ironia que nos contempla de longe, um aviso. Se alguém (um narrador em visita) rememora a seu gosto (e já vê no papel, e em provas de página, e talvez um dia em juízos da Crítica) o final duma mulher que é de todos conhecido e que está certificado nos autos; se se apega a um punhado de notas tomadas em tempos por desfastio, e se mete agora a entrelaçá-las e a descobrir-lhes uma linha de profecia, então esse alguém necessita de pudor para encontrar o gosto exacto, a imagem exacta da mulher ausente. Necessita de discutir consigo mesmo, à medida que recorda, e assim fá-lo por respeito, pela condição de homem em face da distância e da ausência. É, considero aqui, um ofício delicado contar o tempo vencido. ..."

José Cardoso Pires (1925-1998), in "O Delfim", início do capítulo XXVI-b.

Porque está luar...

...e Claude-Achile Debussy nasceu a 22 de Agosto de 1862.

sábado, 21 de agosto de 2010

Música e Poesia XVII : Léo Ferré - Ton Style

Curiosidades 14 : Don Florando

Coronica ... de Don Florando ..., Lisboa, Germão Galharde, 1545

Ensina a experiência que uma obra volumosa, como a reproduzida, não exige apenas um esforço de leitura. Ela encerra, também, desafios vários do ponto de vista bibliográfico.
No entanto, não se pretende, aqui e agora, falar desses assuntos muito específicos. O que nos interessa sublinhar na obra em apreço é a profusão de gravuras, encantadoras, que acompanham, na maioria dos casos, o texto.
Eis um exemplo:

Post de HMJ

Em sequência : a Coudelaria de Alter

Perdoe-se-me a qualidade do vídeo, mas, em português, foi o mais razoável que encontrei. Há coisas melhores, da Alta Escola Equestre de Viena, e da Andaluzia. Até há uma Sinfonia Ecuestre, de Manolo Carrasco, espanhol - algo interessante. Mas preferi ficar-me por Portugal... Como sempre, defendemos mal as nossas coisas. Mesmo as que são boas, originais e de alta qualidade.

Salão de Recusados XXII : A Fénix Renascida (1)


Ao cavalo do Conde de Sabugal, que fazia grandes curvetas


Galhardo bruto, teu bizarro alento
Música é nova, com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento:
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão, que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som, e o andar consento:
Cantam teus pés, e teu meneio pronto,
Nas fugas, não, nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto:
Pois em falsas airosas suspendido
Ergues em cada quebro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.

Anónimo


A F. por alcunha o Cardeal que morreu de repente estando comendo

Pouco Santo mostrou ser
Este que a terra consome:
Os Santos morrem de fome,
Este morreu por comer:
Veio o Cardeal a morrer
Que ninguém da morte escapa,
E por baixo da sua capa,
Dizem não com pouco espanto,
Se não morreu como Santo,
Que teve morte de papa.

Jerónimo Baía (1620?-1688).

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Andar, andar que um poeta / não necessita de casa...


Os versos do título deste poste são de Cecília Meireles (1901-1964), e pertencem ao poema "Canção da alta noite".
Hoje, obriguei-me, depois do almoço, a andar a pé, cerca de um quilómetro e meio. Até há pouco mais de um ano andava, por circunstâncias exteriores, cerca de 7 ou 8 quilómetros diáriamente, a pé. Era salutar e enriquecedor. Agora, já não me sinto obrigado a isso.
E nós, portugueses, somos bons - entenda-se a metáfora - a correr 100 metros. Não somos, no geral, corredores de médio ou longo curso. Claro que há a Rosa Mota e o Carlos Lopes, mas esses vão para além da poesia lírica: são uma epopeia... A persistência não é, normalmente, connosco.
Largamos os afectos, a investigação ou a procura, a admiração e o trabalho continuado, antes de cumprirmos a maratona.
Mas foi bom este quilómetro e meio, a pé, a que me obriguei. Vim ligeiro, apesar do calor, e vi que a levada já ia com pouca água, que cortaram os marmeleiros maninhos (infelizmente), que já há mais fósseis, à superfície, nas terras arenosas e ressequidas. E até trouxe, para casa, uma flor lilás, lindíssima, para oferecer.

A elegância do traço e o gosto da aventura : Hugo Pratt



Deve ter sido a última banda desenhada que li, com gosto, e já na meia idade. O traço deste italiano, nascido a 15 de Junho de 1927, em Rimini, conquistou-me desde logo pela elegância e sobriedade. Foi ms quem mo deu a conhecer, e aqui lhe agradeço, até porque eu já me tinha despedido, definitivamente, da BD. As aventuras de Corto Maltese eram também interessantes, e isso ajudou. Hugo Pratt morreu faz hoje, precisamente, 5 anos, na Suiça. Por isso o lembro.

P.S.: para ms, por me ter dado a conhecer Hugo Pratt.

Bibliofilia 26 : A Fénix Renascida



Muito embora a qualidade de grande parte das poesias, incluídas na colectânea "A Fenis Renascida", deixe muito a desejar, os 5 tomos da obra são raros, muito procurados e bastante caros - quando completos. A publicação destes poemas, maioritariamente do séc. XVII, deve-se aos esforços de Mathias Pereyra da Sylva que mandou imprimir os 5 volumes, entre 1716 e 1728. Dado o sucesso de venda, em 1746, Mathias P. da Sylva fez uma segunda edição, com acrescentamento de poesias.
É esta 2ª edição que possuo, bem como o tomo IV (1721) da primeira impressão. A colectânea, completa, demorou-me anos a reunir. Dois volumes comprei-os na antiga Livraria Histórica e Ultramarina do saudoso Sr. Almarjão, graças à atenção e reserva que me fizera o Sr. Beckmeier. Vários anos depois, consegui adquirir mais 4 tomos - conseguindo completar toda a segunda edição - num leilão do Palácio do Correio Velho. Daí ter o IV tomo na 1ª e 2ª edições. A obra completa, hoje, não deverá custar menos de 400 euros. E será preciso que apareça à venda...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Comic Relief (5) : imaginem...

Um livro comprado numa livraria de Montreal...


Leonard Cohen, antes de começar a cantar, explica que, um dia, entrou numa livraria de Montreal e deparou-se com um livro de Federico García Lorca (1898-1936), que veio a comprar. Foi assim que entrou nos cristais, jardins e arcadas do universo lírico do poeta andaluz, e que esta valsa é uma homenagem a Lorca. Faz, hoje, 74 anos que Federico foi assassinado pela Guardia Civil, logo no início da Guerra de Espanha.

No aniversário de Nanni Moretti

Nanni Moretti, nascido a 19 de Agosto de 1953, é porventura o mais legítimo continuador dos grandes cineastas italianos do post-guerra. A violência, a sátira impiedosa, a política, bem como o humor na sua forma mais despojada, são alguns dos seus temas predilectos. Assim como a ternura e a sensibilidade humana perante o inesperado e a morte. Foi este último registo que escolhi, e que pertence ao filme "La Messa è finita".

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O acaso e a necessidade


O título deste poste devo-o a Jacques Monod (1910-1976) que foi prémio Nobel de Medicina, em 1965. O livro de sua autoria teve larga leitura e divulgação, no início dos anos 70, mesmo em Portugal. Mas a minha preocupação, não é científica. Tenho assistido, nos últimos anos, a pessoas da minha e das gerações vizinhas, a ocuparem-se, com desvelo, em leituras religiosas, outros a encarneirarem, cegamente, em teologias ou interrogações do além-morte que, cada vez mais, me deixam cercado, isolado e perplexo. Será que eu vou resistir com o avançar flébil da velhice?
A Cientologia a que aderiram dois meus conhecidos, deixou-me estarrecido e francamente preocupado. Contrapuseram-me que talvez isso os ajudasse a viver melhor. Não consegui responder. Claro que há outros mundos nas cabeças dos outros, mas, e como dizia o poeta: "...porque lhes dais tanta dor/ porque padecem assim?..." Há depois, também, a dedicação religiosa aos animais domésticos - tenho aqui, bem perto, uma ex-professora outrabandista que já está do "outro lado"; e, quando passeia o seu "lulu" fala, continuamente com ele pela rua: altas filosofias, economia caseira, questões religiosas. Claro que a aturar, anos e anos, criancinhas uivantes, o que é que se poderia esperar?
E, depois, há aquele exemplo nobre de uma ex-primeira dama que se re-converteu, depois de um acidente de aviação, quase mortal, do seu filho - que conseguiu sobreviver. Há que compreender este desespero metafísico, e ser tolerante. Mas eu tenho dificuldade. E até percebo que nos encontramos numa nova Idade Média e que a marcha da Humanidade sempre foi feita de avanços e recuos.
Claro que me posso perguntar como é que o meu coração continua a bater, sem eu fazer nada para isso. Ou o meu aparelho digestivo trabalhe sem eu lhe dar ordens para o fazer. Ou porque é que ainda há monárquicos, nesta altura do mundo. Ou o Pol Pot fez o que fez no Cambodja. Para mim, a resposta é: por acaso ou necessidade. Por vezes, há que procurar, em si, as razões dos outros. Ou rematar com Fernando Pessoa (citado de cor) que dizia que a "metafísica era uma consequência de estar mal disposto". Será?

Em defesa de Antonio Salieri

Há lendas ou histórias que se colam, de forma quase definitiva, a figuras históricas ou personagens, sem que tenham o mínimo de verosimilhança. É o caso da peça de teatro de Peter Shaffer, que deu origem ao filme "Amadeus", de Milos Forman. Aí se define o carácter malévolo e invejoso de Antonio Salieri (1750-1825), que nasceu faz hoje, precisamente, 260 anos. O filme ainda sugere a hipótese do envenenamento e sequente morte de Mozart, a mando de Salieri. Ora, não há qualquer fundamento para este facto. Mas, quem viu o filme e mais não sabe, terá ficado com a ideia assente, na sua memória cultural. Como se costuma dizer o que é preciso é repetir, várias vezes, uma mentira, para que ela se transforme em verdade. O que é verdade é que Antonio Salieri foi um bom compositor e até foi, ao que parece, professor de música de Liszt e Schubert, entre outros.

André Malraux : pintura, fotografia e cinema


"...Quando a pintura deixou de descobrir novos meios de representação, passou a empenhar-se numa procura delirante e de perseguição do movimento, como se o movimento, só ele daí para o futuro, trouxesse consigo a força persuasiva recentemente anunciada pelos meios de representação conquistados. Mas não era uma descoberta de representação que iria permitir a posse do movimento. Aquilo que se designa por gestos de afogados no mundo barroco, não é uma modificação da imagem, é uma sucessão de imagens; não é estranho que esta arte, toda de gestos e de sentimentos, obcecada pelo teatro, viesse a acabar no cinema.
A «concorrência ao estado civil» foi exercida pela fotografia. Mas, para representar a vida, a fotografia, que em trinta anos passara de uma imobilidade bizantina a um barroco frenético, não tinha feito mais que encontrar de novo, um-após-outro, os problemas da representação. Ela detinha-se onde esta se detivera. E tanto mais paralisada quanto é certo que não dispunha da ficção: se fixava o salto de uma bailarina, por outro lado, não podia fazer entrar os Cruzados em Jerusalém. Ora, desde as feições dos Santos até às reconstituições históricas, a vontade de representação dos homens aplicou-se não só ao que nunca viram como, também, ao que conheciam.
O esforço prosseguido durante séculos para captar o movimento detinha-se, portanto, no mesmo ponto, tanto na fotografia como na pintura; e o cinema, se bem que permita fotografar o movimento, não fazia mais que substituir uma gesticulação imóvel por uma gesticulação móvel. Para que pudesse prosseguir o grande esforço de representação enterrado no barroco, seria necessário chegar à independência da câmara em relação à cena representada. O problema não residia no movimento de uma personagem, mas na sucessão de planos. Ele não foi resolvido tecnicamente, por uma transformação do aparelho, mas artisticamente, pela invenção do «découpage». ..."
André Malraux, in "As Vozes do Silêncio" (pgs. 118/119).

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Revivalismo Ligeiro XVIII : Albano Carrisi & Romina Power


Também porque, finalmente, a noite está fresca, amena e silenciosa na sua lua crescente. E permite toda a ingenuidade do optimismo juvenil de agostos antigos.

A volta a Portugal dos pequeninos


A volta a Portugal em bicicleta passava pela Póvoa de Varzim, por esta altura de Agosto. E era um acontecimento, com grande assistência e palmas entusiásticas para os ciclistas concorrentes. Ao fundo do quadriciclista, está o coreto.

P.S.: para MR, que trouxe a Póvoa ao Prosimetron.

Comic Relief (4) : nos 67 anos de Robert de Niro

Uma caricatura interessante de um dos grandes, e mais versáteis, actores americanos.

Favoritos XXXIII : Georges Simenon


A arte de sedução da leitura dos contos ou romances de Georges Simenon (1903-1989) não é fácil de explicar. Mesmo quando me não apetece ler nada, posso recomeçar, sempre, por um "Maigret" ou uma daquelas obras surpreendentes: "La tante Jeanne", "La neige était sale"ou "La maison des sept jeunes filles"... A abordagem do tempo que faz para criar um envolvência inicial, a descrição das coisas inanimadas de uma casa, o tique físico (que se repete) de uma personagem, são alguns dos ingredientes, mas não os únicos, na sólida construção romanesca de Simenon. O adjectivo "fade", ou o verbo "loucher" são também usados, com frequência, pelo escritor. Mas ainda é pouco para definir essa sedução da leitura.
Há, no entanto, um prefácio de Marcel Aymé (1902-1967) no início de "Le chien Jaune" de Georges Simenon, que ajuda a compreender a magia da sua escrita. Passo a traduzir: "...O autor defende-se, aliás, de explicar as suas personagens e de desmontar ao seu leitor os elos dum mecanismo psicológico. Contenta-se em dar informações, indicações, reparos, e não sem economia. A bem dizer, parece que é o leitor que cria as personagens de Simenon e que as diferencia. Há em tudo isto, da parte do autor, uma notável discrição..."

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Fotografia, arte e vida


Há fotografias que têm um misterioso encanto hipnótico. Como alguns retratos da Renascença em que uma estranha fascinação nos leva a fixar, indefinidamente, o rosto do retratado no intuito vão de perceber alguma coisa, nos traços e expressão, da sua personalidade ou sua vida. É uma transferência da verdade que já está inquinada à partida: porque o pintor já deu "opinião" e pôs lá, aformoseando muitas das vezes, o que pensava do retratado. Mas também na pintura abstracta o nosso olhar se demora, quase esquecido, às vezes, procurando, nas cores e nos traços, um vulto indistinto ou uma forma sugerida na busca dalguma intenção do seu autor. É uma tarefa errada, em princípio, ou condenada a uma verdade ilusória. Tanto ou mais do que a ave de rapina que Freud quis ver no manto de Santa Ana, no quadro de Leonardo da Vinci. Seguramente, e a maior parte das vezes, o músico, o pintor, o poeta, não tiveram, à partida, intenção nenhuma. Foi apenas instinto e alma. Ou arte, para quem preferir.
A fotografia que aqui se reproduz data de 1939. Possivelmente, do Verão. E antes do início da II Grande Guerra que começou com a invasão da Polónia, a 1 de Setembro, pelas tropas alemãs.
O fotógrafo parece ter procurado a simetria, na disposição hábil do grupo. É, como se vê, a foto oficial de um casamento. O que posso acrescentar é que há nestas pessoas: comerciantes, industriais, padres ( um deles chamava-se Luís), um visconde e sua consorte, um legionário, um aventureiro e, possivelmente, um suicida. Dos retratados, não haverá mais do que 5 ou 6 pessoas vivas. E a noiva tem, hoje, mais de noventa anos, e saúde, felizmente. O que quer dizer: pensa, anda e é autónoma. Do resto, poderemos tentar adivinhar ou especular, à vontade, com a nossa fantasia, ou com a verdade irreal que lhe queiramos emprestar.

Música para esta noite

Memória 36 : António Nobre


António Nobre nasceu a 16 de Agosto de 1867. Só hoje me apercebi que morreu no mesmo ano de Eça de Queiroz: 1900. Encontraram-se algumas vezes, em Portugal e em Paris. Não foram encontros de grande empatia. Da primeira vez que procurou Eça, em Paris, António Nobre levava um carta de apresentação de Guerra Junqueiro. Desse encontro, em carta para Alberto de Oliveira, traça depois um retrato do romancista dizendo que era um homem" avelhentado, de pernas esganiçadas, careta arrepiada de engelhas, pálido..." Acrescentando que Eça "é a criatura mais céptica que tenho encontrado".

domingo, 15 de agosto de 2010

A propósito de 1 comentário de MR, e com "envoi"

4 Haiku do século XX (II)



O "hai-kai" é, como se sabe, um pequeno poema japonês de três versos, com 5-7-5 sílabas métricas. Do livro "Haiku du XXe. siècle" (Galimard, 2007), antologia cujas versões, em francês, se devem a Corinne Atlan e Zéno Bianu, traduzi 4 poemas, em 3ª mão.
Cinquenta anos
juntos - diz-me que
gostaste deles!

Hashimoto Mudô (1903-1974)

Ninguém me ama
- nado para longe
no mar largo.

Fujita Shôshi (1926-2005)

Sobre a peónia branca
pousa um insecto -
como traço final.

Ishi Kanta (1943)

Cabeça da lagartixa
sob as patas do cavalo,
fecha os olhos.

Imai Sei (1950).

A explicação do silêncio, com destinatário



Convive-se mal, na Europa do Sul, com o silêncio. Sobretudo com o silêncio a dois - seja num elevador, num táxi, num consultório de espera interminável, ou num simples caminhar paralelo. Mesmo que sentimentos ou pensamentos transpirem: e, às vezes, temos quase a certeza deles.
Foi assim que eu me calei, também, quando fizeste silêncio - tendo razões para não fazeres. São, talvez, os equívocos da vida. Mas, para além da minha aparente truculência, sou também susceptível como tu. E até sou capaz de adivinhar as razões do teu silêncio.
Mas, ontem à noite, alguém que me é muito querida e que te é muito próxima, disse-me que estavas de luto. Para além deste abraço de silêncio com breves palavras de explicação, deixo aqui gravado, no Arpose, o teu poema de que gosto mais:

"Senta-se à mesa no meio da casa.
As portas fechadas. Vigia o futuro
devagar. Come, chama as crianças
para o centro do mundo. O vapor
sobe dos pratos, a educação alastra
os móveis lentamente se desfazem
ao contacto das mãos. Como um cão de caça
o vento galga a vedação dos campos.
Maravilhoso galgo. Avança contra
a mãe dentro da mãe dentro da casa."

O falar dos animais


No Prosimetron de ontem, reli um poema esquecido de Pedro Dinis sobre as vozes dos animais. Resolvi, aqui, acrescentar algumas vozes que não constavam do poema, servindo-me do que me lembrava e do livro "Vozes de Animais" de Júlio de Lemos:
1. Burro - ornear,
2. Cachorro - cainhar,
3. Carneiro - regougar,
4. Cegonha - glotear,
5. Cigarra - cerrinar,
6. Gamo - bramar,
7. Macaco - chalrar,
8. Ralo - ririlar,
9. Toutinegra - chilrir.

P. S.: para JAD que, do Prosimetron, deu o mote.

Revivalismo Ligeiro XVII : Toto Cutugno

Ontem/hoje (noite/alta noite) foi um fartar vilanagem!, de bom cinema: "Almoço de 15 de Agosto (Pranzo di Ferragosto)" de Ginni di Gregorio e "Amarcord" de Federico Fellini. Da boa e "velha" Europa, pois claro.O que me fez pensar no pechisbeque quitche americano que polui as nossas salas de cinema - com escassíssimas excepções. Por isso, e para continuar na onda salutar da "velha" Europa, nada melhor do que uma canção italiana.

Bom dia!

sábado, 14 de agosto de 2010

O outro lado do espelho, ou diário de uma jovem irreverente, com pretensões intelectuais


Venho pr'a janela fumar um Marlboro, como se fosse um charro às escondidas...Os cotas, que são uns chatos do caraças, não querem que eu fume dentro de casa. Agora à noite não está vento nenhum: que seca! Lá à frente, na varanda branca, lá está o velhadas do costume. Fuma cigarros, uns atrás dos outros, pousa o antebraço esquerdo no murete da varanda e, às vezes, escreve - que cena!...Tem um pequeno foco de luz que eu não consigo ver ( deve ser daquelas lâmpadas solares que eu vi na Ikea: são o máximo!...), mas que ilumina o interior da varanda. O raio do velho traz sempre qualquer coisa para beber: caipirinha ou mojito? Se calhar é como a Macieira que o meu velho não dispensa depois do jantar...
Lá vai o velho pr'a dentro! tem pernas elegantes pr'a idade: tem pr'aí 70 anos, mas anda depressa, o sacana. O cabelo é curto, mas inteiro, e parece que tem bigode - é daqueles gajos que pararam nos anos 70, e sem brincos, nem piercings; a única excepção é o Paulo de Carvalho, o "velhinho moderno". Mas há uma coisa na varanda defronte, do velhadas, que eu gosto. é o bonsai de que eu vejo a copa, só. O resto está tapado pelo murete. Também vejo umas flores brancas, mas não sei o que é. "Que se boda!", como diz o Zé, que é do Porto, e fala mal comó caraças. Mas eu hoje estou chateada, prontos! Falta-me aqui, também o H. que só regressa pr'a semana. E com estas já fumei três Marlboros, mas os cotas dos meus pais não deram por nada. Estão quadrados na telenovela! Eu não quero morrer assim. O que vale é que vou morrer nova.
Até amanhã, meu querido diário,
"aguiazinha".

Lina Wertmüller...


...que faz hoje 84 anos. Saúde!
Aviso, em tempo: para quem é fã de Fellini, na RTP 2, à meia-noite, passa "Amarcord".

Citações XLI : La Bruyère


As mulheres vão mais longe em amor do que a maior parte dos homens; mas os homens levam-lhe a palma em matéria de amizade.
Jean de La Bruyère (1645-1696) in "Les Caractères".

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Regressando a temas mais antigos, mais comezinhos e sentimentais

O "encantamento " de Guimarães Rosa


Pessoas há que deixam, ao morrer, um traço celeste na terra (evitei o adjectivo: divino). Pela sua sensibilidade única e irrepetível, pela sua inteligência singular, pela sua obra. Mas quando conseguem entrelaçar sensibilidade e inteligência, de modo superior, atingem o que nós, comuns humanos, chamaríamos imortalidade. Não estou a falar apenas de artistas (pintores, prosadores, compositores, poetas...), mas também de mulheres e homens que, conhecendo-os nós, na sua intimidade e discrição pessoal, nos deixaram um legado imperecível que durará até à nossa morte. Anjos que desceram à Terra, e na terra ficaram "encantados" ( e soterrados ) como dizia João Guimarães Rosa sobre os mortos nossos conhecidos. E é precisamente deste escritor brasileiro que eu queria falar.
Estou numa fase da vida em que, para além de ler algumas coisas novas, procuro, sobretudo, reler aquilo que me foi grato, um dia, ter lido - é tudo uma questão pragmática de tempo. E neste avivar de memória, João Guimarães Rosa tem lugar cativo. Na releitura do que ele escreveu, descubro sempre coisas novas. Ou, então, percebo a desatenção da minha leitura inicial. Até porque as palavras se rendem gradualmente à nossa pele, e ganham, com o tempo, virtualidades novas que vamos compreendendo melhor com o tempo. São códigos genéticos que temos de descriptar.
Releio, de momento, "Tutaméia - Terceiras Estórias", do escritor brasileiro. São trinta e oito pequeníssimos (2/3 páginas) contos enormes, acompanhados, na colectânea, de 4 saborosos e humorísticos prefácios. Do conto "Orientação" (história de um casamento entre um chinês e uma brasileira, que correu mal) anotei algumas frases que passo a citar:

- "...o chinês tem outro modo de ter cara."
- referindo-se à fealdade da esposa: "Feia de se ter pena do seu espelho."
- "...De vez, desderam-se, o caso não sucedeu bem. O silêncio pode mais que eles. Ou a sovinice da vida, as inexactidões do concreto imediato, o mau-hálito da realidade."
- "Desapareceu suficientemente - aonde vão as moscas enxotadas e as músicas ouvidas."