sexta-feira, 7 de maio de 2010

As pupilas



O empregado de mesa só apanhava fragmentos dispersos, farrapos do tecido das frases, pequenos sons que se cruzavam no grande espaço, quase vazio. Porque o restaurante era amplo, havia futebol e, para o jantar, apenas quatro mesas estavam ocupadas. O casal idoso, habitual (que morava perto), outro par de idades desirmanadas que permitiam supor alguma clandestinidade; e, depois, um pai e uma pequena filha (11/13 anos?), meia-cega, com a bengala extensível encostada à mesa, do mesmo lado (esquerdo) em que a pupila branca e bogalhuda da rapariga parecia a órbita de uma garoupa ainda fresca. Ao lado, com intervalo de uma mesa, um pequeno grupo de três homens abancava ao canto, junto da coluna. Falavam da pintura do painel na parede, e diziam: "...é do Dourdil, de certeza!" O empregado olhou para a parede e focou a vista, na semi-obscuridade, no vago contorno acinzentado de duas mulheres sentadas, expectantes. Nunca achara grande graça ao mural. Da mesa do casal idoso, o sr. Leal quase lhe gritou: "- Não se esqueça da minha água de Luso, senhor Augusto!"
Mas Augusto estava agora um pouco distraído, ou concentrado e admirando a nobre compostura da menina meia-cega cuja pupila esquerda trepidava um pouco, gelatinosa, como a clara de um ovo estrelado, mal passado. (Como lhe assentava bem o saia e casaco castanho claro e o cabelo penteado e disciplinado sobre a testa...e lá foi buscar a água para o sr. Leal.)
Levou depois a vitela assada para o casal de idades muito diferentes e aproveitou para reencher o copo do homem, com o tinto "Casa de Santar" que estava sobre a mesa. Notou, entretanto, uma tensão dramática no ar. A mulher ainda com um resto de juventude, apesar do cabelo crespo e desalinhado, ele de cabelos já embranquecidos e rareando. Foi talvez o ríctus marcado no rosto do homem e o silêncio pesado da mulher sobre a conversa subitamente interrompida. Regressou à copa onde estavam a acabar de empratar os bifes com ovo e batatas fritas nas travessas rectangulares, destinadas à mesa dos três homens. Só quando os serviu é que reparou nos seus narizes, tão diferentes: um, arrebitado, outro aquilino, e o do homem mais novo, mais curvo e comprido. Era o dono deste nariz que dizia: "...é «Burberrys», o casaco?, onde o compraste?" Augusto não chegou a ouvir a resposta. Houve um ruído próximo. A bengala extensiva da menina meia-cega tinha caído ao chão. O empregado acorreu a levantá-la e reparou nos suaves sapatos castanhos, pequenos, que a menina tinha calçados. Pareciam tão macios, pareciam mesmo de veludo - talvez camurça. A rapariga agradeceu, numa voz meiga, suave, e Augusto, subitamente, ficou aparvalhado, tímido, tão bloqueado que nem sequer respondeu: " De nada..."
Depois foi a longa espera até à meia-noite. Os últimos a sair foram os três homens, muito bem dispostos, que lhe deixaram uma boa gorjeta. Nessa espera morosa, Augusto teve tempo para se lembrar de tudo aquilo que lhe marcara a vida no passado mais recente. As últimas viagens nos paquetes de cruzeiro a servir americanos e ingleses reformados, a filha que lhe morrera havia cinco anos num estúpido acidente, a morte do pai, no ano anterior. Fez-se à rua.
E, após o comboio sonolento, quando abriu a porta de casa, na Linha de Sintra, o foco de luz incidiu sobre aquela reprodução do quadro que tanto gostava. Tinha-o visto na sala de jantar de um paquete onde andara quase cinco verões. Em França, conseguira comprar uma cópia que emoldurara: era um olho quase vazio, mas povoado de núvens e, ao fundo, o céu azul. (Tinha um nome: Magritte. Devia ser de alguma pintora francesa.) Augusto deitou-se e adormeceu. Toda a noite uma pupila branca e gelatinosa alternou com um olhar azul cheio de núvens claras, num sono de pesadelos sucessivos. Mas, curiosamente, na manhã seguinte, Augusto acordou bem disposto e repousado.

12 comentários:

  1. Ora aqui está um texto bem escrito. Gostei muito. Posso divulgar ? Quem é o autor?
    Onde publicado ? Deu trabalho a passar mas valeu (me) a pena. Grato.
    Aguardo informacões.

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  2. Disponha,Luís: o texto é meu. E obrigado.
    A. S.

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  3. Magritte é homem não é mulher. É belga não é francês

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  4. Meu caro manu:
    é preciso não levar a sério a ficção que permite, para desclassificar a cultura de um empregado de mesa - embora viajado - introduzir algumas derivas irónicas e culturais.

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  5. A S (de A P S ) = Alberto Soares da Etiqueta ?
    Alguma coisa a ver com:
    "Os anjos não modificam
    sua voz ou estarmos
    dentro de nós para sempre."- ou coincidência apenas?

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  6. Para Luís:
    exactamente o(s) mesmo(s).

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  7. Mas é um gosto e uma honra!
    Não dei por que saíssem mais publicações mas não sou de confiança: Poesia ou ficção? Onde?
    Vi que havia um de 84 - que me passou. Depois de 88?
    Mas é um gosto! Depois de tanto tempo vir à fala!
    Bons tempos ! Parabéns.
    Quase um " Regressar
    pelos pormenores da minha vida"...

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  8. Curiosa esta espécie de coincidência.Às vezes tenho uns palpites (nunca na lotaria) e vou tendo alguma memória. Um amigo aqui de Penafiel tem uma boa biblioteca excelentemente organizada que frequento e em troca vou arquivando. Com poucos ovos se faz grande omelete, basta bater as claras.
    Un dia destes falarei mais de mim, se vier a propósito. E repito, parabéns pelo seu Equilíbrio.

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  9. Obrigado,Luís, mas agora fiquei eu curioso...
    Não dá pista nenhuma?
    De Penafiel, para além dumas amigas de juventude e uns bailes no Ateneu?,Assembleia?,Grémio? com música de piano do Sarbib, pai, houve uma madrugada na estrada de regresso com 2 furos monumentais...foi preciso esperar pelo reboque para chegarmos a casa, já de manhã.

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Muito bom mesmo. O tipo do nariz curvo e comprido a falar sobre tecido inglês está bem apanhado. E isto claro, traduzido pelo sistema de interpretação do empregado de mesa.
    Tá mesmo bem apanhada a noite. A menina meia cega q realmente estêve presente nas nossas mentes, onde ainda têve tempo de dar uma escapadela e fazer um.filho.
    Gostei muito. Grande abraço.

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