domingo, 2 de maio de 2010

Tricentésimo : melros e hortulanas




Acontece que, por razões de local de trabalho, frequentei com certa regularidade, durante muito tempo, ao almoço, um restaurante que, com alguma fama nos anos 60 e 70 do século passado, se desactualizou um pouco. Manteve, no entanto, ao nível de cozinha e serviço, alta qualidade e saber gastronómico. Eram os marmelos em calda, de Outubro, as galinholas, as perdizes, a lebre com feijoca, na época da caça, os sonhos pouco antes do Natal. E um arroz de grelos malandrinho, feito na altura, quase verde, que acompanhava, lindamente, o bife de espadarte. Afora as gentilezas de que era alvo, por parte do Fernando que conheci, tinha ele cerca de vinte anos, e de quem me despedi com estima, há pouco, já quarentão, os empregados foram sendo substituidos ou reformados. O Ricardo ainda aparecia, septuagenário, com o cabelo pintado, mas sorridente, quando havia mais gente ao almoço - uma festa de empresa, um aniversário. Para ajudar. Ora, um dia (talvez há cerca de 4 ou 5 anos), quando cheguei, o Fernando disse-me logo:
"- Não perca o arroz de melros! Está óptimo..."
Eu fiquei perplexo e titubeei: "...Deixe-me pensar..." O Fernando trouxe-me o cinzeiro, os salgados em miniatura, ainda mornos. E eu, cheio de problemas metafísicos e ambientais, lembrava-me do arroz de borrachos, que tanta vez comera, em pequeno. Que era tão bom e nunca mais provara. E a tentação e a dúvida mortificavam-me, gastronomicamente: nunca eu tinha comido, na minha vida, um arroz de melros. Até que disse, de mim para mim: "Se não os comeres, tu, alguém os irá comer! Já não tornam a cantar..." E disse para o Fernando:"- Arroz de melros, com Quinta de Cabriz, tinto!"
Estavam magníficos e souberam-me muito bem. Ainda hoje, no entanto, me lembro e tenho remorsos. Porque eu gosto muito de melros, vivos, e a cantar logo pela manhã... Consola-me o facto de ter exemplos superiores, em relação ao meu remorso gastronómico.
Passemos à hortulana, também chamada escrivão ou escrevedeira (Emberiza hortulana). Este pequeno pássaro, migratório, de canto ou pio relativamente simples, da família do verdilhão, com cerca de 15cm. e um peso entre 20 a 25 gramas, tem o pescoço normalmente amarelo e o ventre alaranjado. É muito apetecido desde os tempos de Roma imperial. Mas é proibida a sua caça e venda, em França, dada a raridade. Porém, nas Landes, a proibição nem sempre é acatada. Os Gascões caçam hortulanas, preparam-nas e deliciam-se com elas. A avezinha é objecto de uma engorda forçada (gavage), antes de ser cozinhada. Metem as hortulanas em pequenas gaiolas que, por sua vez, são postas em locais escuros. Para alimentá-las colocam, no interior das gaiolas, alpista, pequenos figos e grande profusão de bagas silvestres e bagos de uva, além de pequenos insectos. Em cerca de duas semanas, as pequenas hortulanas quadriplicam de tamanho dado o excesso de alimentação, o pouco espaço de que dispõem e a falta de exercício. Nessa altura, as pequenas aves engordadas são, por fim, afogadas num copo de "Armagnac" e, depois de depenadas, as hortulanas são assadas ou estufadas na sua própria gordura, entretanto adquirida.
Pouco antes de morrer, o Presidente François Mittérrand - creio que para o jantar de Ano Novo - encomendou uma das suas últimas refeições, em conjunto, para cerca de 30 familiares e amigos. A refeição era composta de ostras de Marennes, foie gras, capões. E hortulanas embora, como já referi, fossem proibidas. Dois tipos de "Sauternes" acompanharam o foie gras e as ostras. Para os capões e hortulanas foram servidos "Château Lestage Simon", de 1990, e "Château Poujeaux" de 1994. O Presidente deliciou-se, dizem. Cerca de 10 dias depois, morreu. Este sinal de apego e amor à Vida, este despedir-se da Terra antes de morrer, colhendo-lhe ainda alguns dos melhores frutos (proibidos), mesmo que comporte um pecado, um infringir de regra, encontra em mim, pecador também, um coração fraco e compassivo. E sei entender.
Embora nunca tivesse comido hortulanas.
P. S.: Para o Luís, que lembrou, há dias, a arrozada de melros do abade de G. Junqueiro.

2 comentários:

  1. Aphorismes du Professeur
    Pour servir de prolégoménes a son ouvrage et de base éternelle à la science
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    II. Les animaux se repaissent; l´homme mange; l´homme d´esprit seul sait manger.
    III. La destine des nations dépend de la maniére dont elles se nourrissent.
    IV. Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es.
    V .Le Createur, en obligeant l´homme à manger pour survivre, l´y invite par l´appétit et le recompense
    par le plaisir.
    XX Convier quelqu´un c´est se charger de son bonheur pendent tout le temps qu´il est sous notre toit.
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    Meditation XV
    Des Haltes de Chasse
    1) J´invite les camarades à préférer le vin blanc; Il resiste mieux au mouvement et à la chaleur et désaltére plus agréablement.
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    Je remarque avec orgueil que la coquetterie et la gourmandise, ces deux grandes modifications que l´extrême sociabilité a apportées à nos plus impérieux besoins, sont toutes d´origine française.

    Du gibier
    (...)
    Parmi les petits oiseaux, le premier , par ordre de excelence, est sans contredit le becfigue.Il s´engraisse au moins que le rouge gorge ou l´ortolan, et la nature lui à doneé en autre une amertume légère et un parfum unique si exquis (...) Peut de gens savent manger les petits oiseaux; en voici la méthode telle qu´elle m´a étè confidentiellement transmise par le chanoine Charcot, gourmand par état et gastronome parfait, trente ans avant que le mot fût connu.
    Prenesz par le bec un petit oiseaux bien gras, saupoudrez le d´un peu de sel , ôtez -en le gésier, enfoncez-le adroitement dans votre bouche , mordez et tranchez tout près de vod doigts, et mâchez vivement: il en résulte un suc assez abondant pour enveloper tout l´organe,et vous goûterez un plaisir inconnu au vulgaire:
    Odi profanum vulgus, et arceo.
    Horace


    PHYSIOLOGIE DU GOUT – Brillat -Savarin

    Também não. Mas quem me dera !...

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  2. Nunca experimentei nem melros nem hortulanas. Estas acho que nem as conheço.
    Há dias, o Jad e eu falámos sobre canjas de borracho e borrachos cozidos. Hoje não sei se comeria...

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