1. Era uma vez um menino que nasceu cego para as coisas da terra. Só via o mar e o que nele havia. Sabia caminhos nas águas, carreirinhos. Dizia: a luz nasce do mar e não dos astros. A claridade lhe chegava do azul, ainda molhada e, depois, flutuarejava nos céus. (...)
2. De tanto esperar o amor, ele acabou por amar a espera. Era Horácio, de olhos inodoros, vida acanhada e sonhos aguados. Tímido e desencorpado, ele era um subexistente. Os outros arrumavam-se com as namoradas. Horácio não, solteirava em estado de deserto sensual. (...)
3. Eu estava cheio de um desses cansaços que nos pesam mais que o corpo. Cansado de ter raça, cansado de ter nome. Estava cansado de ser. Que repouso concedermo-nos nestas alturas senão darmos feriado à existência? E era o que eu estava a dar seguimento naquele dia, fugindo-me do mundo, dando pausa ao pensamento. (...)
Este último Prémio Camões que, merecidamente, galardoou a obra do moçambicano Mia Couto (1955), como que me sabe a celebração póstuma de Guimarães Rosa (1908-1967). Porque, queiramos ou não, é esse arquétipo que é convocado, embora num registo pessoal e africano. Mia Couto não deixa de ser um filho directo e dilecto do grande escritor brasileiro de Cordisburgo.
Nota: as transcrições são retiradas da obra "Cronicando" (Ndjira, 2008), de Mia Couto.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEm relação às convergência Guimarães Rosa / Mia Couto, pois é. Por isso mesmo é que não entendo o sucesso de vendas de Mia Couto em Portugal. Quanto às traduções, não sei, porque até me parece intraduzível.
ResponderEliminarBoa domingo!
Há modas, MR, e o rapaz é bonito. Mas penso, também, que Mia Couto é um bom escritor. E um homem afável, embora com opiniões firmes sobre o tempo que corre. Tenho respeito pela obra dele.
ResponderEliminarQuanto aos tradutores haverá sempre "de tudo, como na botica"... G. Rosa teve a sorte do Meyer-Clason, para alemão. Pode ser que o Mia também tenha uma estrelinha, na testa...