O afecto também pode ser só silêncio, cada um abandonado ao dever do que gosta. Mesmo que o cenário possa ser uma velha garagem, que ainda cheira a óleo. Mas a manhã vinha de fora, com todo seu perfume, ainda de Verão. Por isso, vinha uma aragem pela porta grande, que era também leveza, e podíamos assim dedicarmo-nos, ambos, àqueles livros tão nobres e antigos.
Eu agarrei numa tradução das Odes de Horácio e só a larguei no fim de a ler, completamente. A versão portuguesa é muito escorreita, e feliz, muito embora o tradutor, açoriano, José Augusto Cabral de Mello (1793-1871), nos diga que lhe demorou 18 anos a fazer. E no posfácio nos dê conta do cuidado (mandou vir, até, o papel da Inglaterra, para impressão...) e das vicissitudes por que passou, até conseguir imprimir a obra, em Angra do Heroísmo, em 1853, numa edição de apenas 622 exemplares. Tão rara, que nem Inocêncio a regista.
O livro, intitulado "Odes de Q. Horacio Flacco/ traduzidas/ Em verso na Língua Portuguesa/ por/ José Augusto..." é ameno de se ler. Por isso, aqui vai uma amostra divertida da versão da Ode VIII de Horácio, feita pelo poeta (que se carteou com Garrett) e advogado açoriano:
A uma Velha Amorosa
Perguntas-me, c'um século de edade
E assaz graveolenta,
Qual o motivo que me enerva tanto?
Os teus dentes são negros,
E teu rosto a velhice encheu de rugas.
.......
..............
Será tudo isto proprio
A inspirar-me no peito amor ardente?
Sê mui rica, e se vejam
Em teu enterro os triumphaes retractos
De teus avós illustres;
Não apareça dama alguma tanto
Como tu carregada
De finissimas pérolas formosas;
Ri-se amor disso tudo.
De que aproveitam os estoicos livros
Que tão vaidosa ostentas
Entre almofadas séricas mimosas?
Pode a sua sciencia
Fazer acaso me enrigeles menos
Do que as não-litteratas?
Menos frigido sou porque procuras
Em mim accender fogos
Com estranhos excessos amorosos
Que repulso soberbo?
Um livro que dá algum trabalho para encontrar. Para mais que julgo que muitos se perderam num naufrágio.
ResponderEliminarObrigado pela achega do naufrágio, e leitura.
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