sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Notas de Leitura V: "Propos", de Alain



“Jeannot era um artilheiro sem medo, que conhecia até ao mais pequeno detalhe tudo o que se pode aprender das formas, das cores e dos ruídos. Quase iletrado; lia penosamente e só aprendeu a escrever nos finais do ano catorze. Cabouqueiro de profissão e orgulhoso como são quase sempre os cavalheiros da pá, que não vivem propriamente para bajular; e ainda para mais respondão, não se esquecendo nunca de reclamar os seus direitos. Todavia, nos momentos difíceis, silencioso, calmo e pronto, adivinhando a ordem e enxotando o medo apenas pela sua presença. De resto sabendo fazer de tudo na perfeição; tirava do buraco de um canhão cheio de água lenços brancos como neve que dir-se-iam passados a ferro. Como impedido venceu a escravatura militar em tempo de paz por força desse género de talento. Mas, em tempo de guerra, Jeannot jogava um jogo mais nobre. Tive muitas vezes a oportunidade de observar aquela fronte (…) arquitectural (…); o género de fronte que não suporta o desprezo (…).
Perito experiente do terreno, das baterias inimigas e do tiro, conhecendo as boas e as más horas como os bons e os maus caminhos, Jeannot era o mais seguro companheiro para as surtidas de infantaria que são a prova do artilheiro. Nessas missões o homem de engenho está necessariamente submetido ao homem de decisão e de expediente, sejam quais forem as respectivas patentes. O nosso Jeannot tinha essa decisão e essa economia de movimentos que pareciam afastar o perigo e que na realidade afastavam os perigos imaginários. Daí a amizade de um dia para o outro e uma real igualdade entre o artilheiro de rústico falar e o chefe timorato. Em consequência Jeannot recebia uma cruz, regava-se com água-de-colónia, engraxava as botas e olhava o chefe com um orgulho desafiador (…).Mas (…), passado o perigo, a glória não durava muito e Jeannot voltava aos trabalhos de rotina e sentia novamente o peso da administração militar que esmaga os talentos, sobrepõe obrigações a obrigações e acolhe duramente aqueles que reclamam. Nem todos os dias há a oportunidade de ir buscar uma sopa atravessando mil perigos, de resgatar um ferido de um qualquer abrigo bombardeado ou de apagar um fogo junto ao paiol das munições. Após semanas de perseguições, de meditação e de resmungo consigo mesmo, o artilheiro Jeannot (…) pedia a passagem para a infantaria.
Era colocar a vida em jogo, mas era também a oportunidade de ficar por cima, de ser escutado; aquela cabeça orgulhosa não exigia menos.
Por muito desprezado que seja o homem de tropa nesse regime de despotismo oriental, esse homem pode sempre afrontar os seus superiores desde que seja capaz de ultrapassar o medo; e é por essa via que aqueles de quem se diz serem fracas cabeças acabam muitas vezes como heróis. Diz-se frequentemente que um chefe deve o seu poder ao facto de nunca se mostrar inferior àquele em quem manda; eu, por mim, anotei um outro efeito do poder despótico, que nunca tinha previsto, o facto de o subordinado orgulhoso querer ser pelo menos superior nalguma coisa e de quase sempre o conseguir (…).
Entretanto ia observando Jeannot que continuava a travar as suas batalhas e alcançava a vitória unicamente pela sua coragem. Mas onde estava o inimigo que era preciso vencer? Muito próximo, era o seu comandante. Jeannot combatia pela liberdade como diziam os jornais, mas não como eles a entendiam”.


Não é de Jeannot o olhar que desde o retrato nos olha com a certeza do mal- estar do corpo, atolado na água e na lama de uma trincheira da frente da guerra de catorze, e de que de tudo o resto sobra a dúvida. Do homem, do olhar, do porquê do gesto e do quase desafio do sorriso ficam hoje, como porventura ficaram ontem, as razões por saber, mesmo que o próprio as dissesse de viva voz, pois é sempre grande o abismo que separa aquilo que, de facto, um homem é e sente e aquilo que a sua circunstância permite traduzir, e de que talvez só o corpo guarde concreta memória.
Mas é a partir de pedaços da realidade como este que os propos de Alain alcançam a nitidez de um positivismo quase solar, de quem persegue o lado incómodo e difícil de pensar, não o pensamento “subalterno” e “politécnico” mas o pensamento encharcado nos fios esconsos da vida, em conflito aberto com as suficiências do lugar-comum e que vai iluminando o proprium do Homem: a dignidade, o sofrimento e o saber de ofício, distinguindo sempre a sujeição de quem obedece do acto livre de quem respeita.
Iniciada em 1906 no jornal La Dépêche de Rouen et  Normandie, a escrita dos  propos nasce e constitui-se, como refere o próprio Alain, (pseudónimo de Émile Chartier, 1858-1951), no espaço livre de duas páginas que são a sua medida, uma medida em que o texto se desdobra e se afeiçoa como o dos poetas perante a medida de estrofe. Por um lado, a obrigação diária de escrever, numa espécie de corrida a galope que terminava dia a dia por mais um texto fechado (ritmo que perdurou até à guerra de 1914, em que Alain participou como artilheiro), por outro a regra jornalística que impunha ao escrito os constrangimentos próprios do verso acabaram por ditar a forma fragmentária a que chamou propos, na qual, por assim dizer, é o sentido do texto e não o seu pretexto, isto é, a pedagogia do acto de pensar sobre as coisas e não a coisa pensada aquilo que verdadeiramente se oferece ao leitor, no espaço contido de uma espécie de poema sumário em que, sob o chapéu de uma metáfora ampla – algures a meio caminho entre a dispersão egocêntrica de Montaigne e a síntese provocatória de Valéry – filosofia e literatura se confundem.
Alinhadas como que “seguindo o curso do tempo e os movimentos do pensamento”, as cerca de seis centenas de textos que constituem esta edição dos Propos (La Pléiade, 1956), da responsabilidade de Maurice Savin, com prefácio de André Maurois (e que cobre o período compreendido entre 1906 e 1936) assemelham-se hoje a uma escolha de posts de persistente blog onde se recortam a acção e o perfil do cidadão e professor Émile Chartier e do filósofo Alain. E embora tratando-se de pouco mais de 10% da totalidade dos propos (que serão ao todo cerca de 5000), mesmo assim a escolha de M. Savin permite-nos desfrutar do essencial de um pensamento em acto, de uma espécie de estaleiro da razão, de conversa continuada, sempre transbordando da certeza para a dúvida, em estado de deliberada imperfeição.
E é no decurso dessa conversa com o leitor que os propos se transformam no lugar onde se interrogam as aparências, se duvida das evidências, se massacram os lugares-comuns e se reconduz a filosofia ao valor primeiro de uma ética, em que Descartes e Pascal são, de algum modo, as traves-mestras de um olhar perscrutador sobre os múltiplos recantos do corpo e da vida, e em que os ecos de Montaigne e de Balzac se reconhecem, quer pela forma como o pretexto se expande num exercício aditivo e continuado de pensar, quer pelo modo como, à maneira de Balzac, o detalhe se vai revelando como reflexo do todo e a palavra reencontra no “bom juízo (que) é a alma da moral”, para lá dos fatalismos razoáveis, o homem livre, senhor do sentido e da ordem das coisas e sempre capaz de dizer não, como mais tarde sublinhará Camus.


Pode, portanto, dizer-se que é pelo radical sentido da liberdade e do exercício da razão que na obra de Alain, nomeadamente nos seus propos, se desenha e se revela o fio da sua modernidade. Considerados no seu alinhamento cronológico, que são afinal os propos senão fragmentos de uma indagação incessante sobre as múltiplas facetas da realidade humana, sempre refractária, na sua aparência caótica, a toda a ideia de sistema e em que ao luzir da certeza se segue a sombra da dúvida, que não é outra coisa senão a responsabilidade de ser livre e de perguntar, como essa dúvida fosse a forma irónica de libertar a realidade dos atavios do mistério e do conforto das ideias feitas.
“Quando uma criança grita e não quer ser consolada, a ama faz muitas vezes engenhosas suposições acerca daquele jovem carácter e daquilo que lhe agrada e lhe desagrada; chegando mesmo a convocar a hereditariedade em seu socorro, reconhecendo até o pai naquele filho; esses ensaios de psicologia prolongam-se até que a ama descobre no alfinete a causa real de tudo (…).
Os males do ano de catorze vieram, conforme creio, do facto de os homens importantes terem sido surpreendidos; e daí terem tido medo. Quando um homem tem medo, a cólera não anda longe; a irritação segue-se à excitação. Não é uma coisa agradável um homem ser bruscamente privado do seu ócio e do seu repouso; muitas vezes modifica-se e modifica-se muito. Como um homem acordado de repente; acorda demais. Mas não digais nunca que os homens são maus; não digais nunca que eles têm um tal carácter. Procurai o alfinete.”
Embora contendo, como todos os escritos, as marcas de um tempo extinto, que são os nódulos, quiçá salutares, do próprio envelhecimento, reconhece-se nos propos o apelo de uma irreverência bem medida, sobretudo na maneira como, colocando-se do lado oposto do panfleto, prossegue uma indagação sempre próxima das coisas e longe da abstracção fácil dos sistemas, revelando no seu lastro de realismo, sempre rente ao corpo e por vezes surpreendendo-se com o formato da própria humanidade, a necessidade de obedecer, para que “a regra (que) é a verdade do homem” subsista, mas que ao mesmo tempo celebra com apurada ironia, o direito à resistência surda e ao irrespeito militante pela vã glória de mandar.
Filosofia para não filósofos, ou talvez não; para ler com o vagar e a tenacidade de um pescador de águas profundas.         

Post de H. N.  

Nota: O Arpose acolhe honrosamente, e com satisfação amiga, mais uma leitura atenta de H. N. - que muito lhe agradecemos. 

2 comentários:

  1. Agradeço, muito reconhecido, em nome de H. N..
    Também gostei muito, MR.
    Uma vez mais: bom dia e boa viagem!

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