terça-feira, 27 de agosto de 2013

Ramón Gómez de la Serna e as luvas


Há livros, como há vinhos e queijos, que compramos, cegamente, pelo nome, pela marca, pelo autor ou criador, porque são para nós, à partida, sinónimo de qualidade ou sabor.
De D. Ramón, sou frequentador habitual e obrigado das suas greguerías, mas este "O Médico Inverosímel" (Antígona, 1998) era pouco provável que o viesse a procurar pelas livrarias. Foi HMJ que o descobriu e mo apontou. Estava em saldo, na nossa livraria outrabandista de referência, e custou 5 euros, apenas.
Ora, atente-se neste bocadinho de boa prosa (traduzida por Júlio Henriques) ramoniana:

"...Encontrávamo-nos num desses cafés que hão-de ser sempre o meu paraíso humorístico. Ele chegava, tirava o chapéu, depois o sobretudo, e por fim as luvas, com a escassez e lentidão com que sempre se calçam e descalçam as luvas, como quem se esfola com o cuidado de não se ferir muito, ou como quem arranca um emplastro poroso muito agarrado à pele. Só os descuidados as descalçam como peúgas e as puxam como meias luvas de dedos cortados, como ocarinas de cinco grandes orifícios.
As nossas luvas, quando ficam sós e abandonadas, adquirem gestos distintos: gesto de um orador, um puro gesto de Demóstenes; gesto de pianista em plena execução; gesto - quando caem agarradas pelo pulso, uma boca acima e outra boca abaixo - de preso que levam algemado ao presídio; mas em geral envergonham-nos, tomando uma atitude lastimosa de pedir esmola, sobretudo quando as pomos nas mesas dos cafés. ..."

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