domingo, 31 de março de 2013

Retratos (9) : Henrique S. G.


Há dias, ao passar numa das ruas da Baixa, reparei, contristado, que a loja, onde se vendiam pequenos acessórios de bom gosto e uso doméstico, estava fechada. Pertencia à mulher de Henrique S. G., e ao irmão dela, que conheci jovem, urbano e delicado, um pouco desengonçado de gestos. Semelhante ao Henrique que, apesar disso, praticava esgrima, com uma elegância que eu invejava, nesses recuados anos 70, portugueses. O que melhor o identificava, porém, eram uns dedos espatulados e grossos, na ponta final. E uma caligrafia tão miúda e tão irregular, que era necessário descriptá-la lentamente. Alto e desassombrado, Henrique tinha também uma simpatia e carisma pouco comuns. Na empresa, onde predominava a tecnocracia servil e o arrivismo apolítico, Henrique era uma excepção, na sua solidariedade para com os inferiores, no sentido de justiça e na ampla cultura que possuía.
Apercebi-me disso, logo em 1972, quando, com ele, orientei um longo processo de averiguações sobre roubos contumazes na empresa, que acabou por conduzir a cerca de uma dezena de despedimentos. Durante 3 dias intensos, tivemos de ouvir mais de vinte colaboradoras. Chegamos ao fim arrasados e ele rematou assim: "Com o miserável salário que recebiam, se não roubassem, teriam de ir pelas ruas a venderem-se..."
O Henrique veio a casar tarde e a ser pai, ainda mais tarde, pouco antes de completar 50 anos. O último trabalho que fizemos juntos, em 76/77, foi um projecto de reestruturação da Empresa, num grupo de mais 5 colegas, e que ele estimulou e dinamizou, incansavelmente. Quatro anos depois, eu saía da empresa, mas o meu Amigo já começara a modificar-se, gradualmente. A família que, entretanto, se alargara obrigou-o (?) a algumas cedências, com os novos poderes da empresa, e a decisões que, na altura, me pareceram ambíguas e muito discutíveis... Pagaram-lhe em promoções, ele comprou acções da firma e, finalmente, nomearam-no administrador. Quando saí, escrevi-lhe um cartão amigo, mas melancólico, lembrando-lhe "os bons velhos tempos" de camaradagem solidária e idealista. E, ao escrevê-lo, lembrei-me da frase de Garrett: "a necessidade pode muito". Há sempre "viradeiras" à esquina das nossas vidas - podemos é aceitá-las, ou não.
No final dos anos 90, a nossa comum amiga B. deu-me a notícia de que o Henrique morrera, subitamente, de um enfarte fulminante, mas que a família ficava bem. Quando, há dias, reparei na loja fechada, que fora da mulher e do cunhado, perguntei-me se, ao menos, ele teria sido feliz. Penso que sim.

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