domingo, 4 de julho de 2010

A Última Viagem


Este homem pesado e grosso, que tenho à minha frente, irá morrer dentro de três dias. Os olhos, agora de um azul desmaiado, parecem alumbrados, e o jeito que dá às calças do pijama castanho, a compor-se, tem um sabor triste e tímido de adolescência. Está sentado a meio da cama e tenta levantar-se. A ambulância espera, quatro andares abaixo. Este homem já foi criança, viu morrer, ao lado, dois irmãos mais novos, levados por inesperadas ondas atlânticas numa ilha distante. Foi, depois, telegrafista, capitão de marinha mercante, viu Arcangel, Amesterdão, Surabaya, o Rio, viu o porto de Antuérpia, pouco antes da guerra. Amou muitas mulheres. Tirou o curso de Direito, já passara dos quarenta anos. E vai morrer, dentro de três dias. Duas mulheres amparam-no e ajudam-no a vestir-se. Acendem a luz no corredor - é Novembro, ao fim da tarde. O homem não fala, nem sabe que vai morrer. Fez há pouco 81 anos.

Deixou-me, em testamento, cerca de 1.400 páginas manuscritas de uma "História do Direito Marítimo Europeu", numa escrita elegante e sincera, cheia de notas de rodapé; mais uma gravata de seda italiana dos anos 60, que lhe ofereceram, em Bruxelas, num congresso em que participara. E, ainda, as "Leis Extravagantes collegidas e relatadas pelo Licenciado Duarte Nunes do Liam...", na sua edição princeps de 1569. Houve nele uma intenção determinada nesta, para mim, inesperada herança. Até porque eu só o conheci já no outono da vida, apenas havia cinco anos. Fizera-me confidências, é certo, contara-me muitas histórias, mas só percebi, depois, a intenção do seu legado.

Ao folhear a sua obra manuscrita inacabada, que começou a escrever quando se reformou, encontrei, a meio, duas cartas com selos belgas e a mesma remetente: Bietje Claes, de Antuérpia. As cartas distavam, entre si, apenas doze dias, e as datas eram de dois anos antes da morte de Manuel. Por elas consegui reconstituir um capítulo da vida deste homem de olhos azúis, elegante de gestos, quando o corpo, pesado de anos, já não lho permitia. Manuel tinha conhecido Bietje, em 1966, num congresso de Direito Marítimo, em Bruxelas. Separavam-nos 31 anos de vida. Manuel tinha 55 anos, a jovem flamenga apenas 24.

Na primeira carta, Bietje Claes explica que enviuvou, que conseguiu obter a direcção de Manuel através da Embaixada Portuguesa. Que vai estar, no próximo fim de semana, em Lisboa, no Hotel Tivoli, e que queria muito vê-lo. Pela segunda carta, que continha também duas fotografias, concluí que Manuel não chegou a ir ao encontro. Não terá sido a distância do Estoril à Avenida da Liberdade que inibiu o velho marinheiro de se encontrar com Bietje. Nem a vigilância atenta e ciosa de D. Maria poderia destruir um alibi bem preparado por esse advogado experiente... Manuel preferiu preservar uma memória e uma estética. Tinha 79 anos.

Posso, hoje, imaginar que Bietje Claes ainda caminha, quase todas as manhãs, vinda de Lange Ruisbroeck-Straat, em direcção ao pequeno mercado de Dageraadsplats, em Antuérpia. E, nos dias rigorosos do Inverno flamengo, aquecem-lhe a alma ou o coração, quase septuagenário, os fragmentos já pouco nítidos de um rosto de olhos azúis. E o murmúrio de sons, quase uma música, de algumas palavras ardentes, na penumbra de um quarto de Bruxelas, ditas há mais de quarenta anos, numa língua cantante, mas estranha, e que ela nunca compreendeu.


P. S.: à memória de M. R. de S., Jr.

8 comentários:

  1. M. R. de S., Jr. gostaria de ter lido este lindo texto.

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  2. Obrigado,MR. E que a festa de Aniversário corra, familiarmente, muito bem!

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  3. Lindo!
    Até tenho vontade de mostrar este texto a mais gente que conheceu o Ramos de Sousa... mas penso melhor deixar por aqui e ser eu o único dos descendentes mais próximos a ler este texto.

    Muito bom APS! E lembra-te que o perfeito é inimigo do bom.

    JS

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  4. Obrigado. E o bom inimigo do óptimo, Jorge!

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  5. Pois é. Mas o problema é q se pode sempre melhorar o q já é bom. Acaba por tender para um limite infinito. Resultado: nunca mais se publicava nada.

    ;)

    JS

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  6. Uma história triste que, depois de contada, parece bela. Este o fascínio da literatura...

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