segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Retratos (4) : José J. C. G.


Quando re-acordei do traumatismo, no Santa Maria, a 1 de Novembro de 1973, cerca da meia-noite, o José J. C. G. (1937-1988) estava a meu lado, deitado numa maca térrea, o rosto ensanguentado, e a gritar: "- Tirem-me daqui!" A mim, o nariz doía-me terrivelmente, tinha partido a cana e, quando me assoei, o lenço ficou rubro. Tentei reconstituir tudo e foi difícil: só me lembrava, no automóvel, ao entrarmos no túnel do Campo Grande, de dizer: "- Começou a chover...", para o H. S. que ia ao volante e para o José, que ia sentado no banco de trás; eu ia no lugar do morto. Mas quem sofreu mais foi o meu Amigo da rectaguarda que foi projectado para fora da viatura, aquando do choque, e rojou vários metros pelo solo, até bater numa árvore. Mas, na altura do hospital, o tempo intermédio desvanecera-se por completo na cabeça, e uma branca nebulosa ocupara esse espaço. Só algum tempo depois, os três conseguimos reconstituir o acidente, como um puzzle difícil a que faltavam, para sempre, algumas peças. José teve duas fracturas expostas e só 3 meses depois voltou à empresa.
Eu tinha-o conhecido em 1972, já ele tinha 2 dedos a menos na mão direita - acidente da Guerra Colonial. Mas era folgazão, caloroso e solidário. O pai morrera-lhe cedo e José crescera e fizera-se homem, com um padrasto de nacionalidade italiana de quem herdara, provavelmente e por mimetismo, um gesticular frequente e um concentrado amor a Florença. Como eu, também gostava de vinhos velhos (lembro-me de um "Grantom", da Real Companhia Velha, anoso, que ele abriu e estava um espanto!) que compartilhava com alegria e generosidade. Mas depois desse segundo acidente do José, que eu partilhara, ficou-me um pressentimento irracional de que o meu Amigo tinha uma estrela maléfica a pesar-lhe no destino.
Depois da "Viradeira" de 76/77, o José, que assumira posições políticas no PREC, foi "emprateleirado", e resolveu sair da empresa. Fomo-nos encontrando, espaçadamente, para jantar. E eu sabia que ele estava com dificuldades financeiras. Falava-me de ir para Angola, para se aguentar melhor. Na última vez que jantei com ele, no "Rio Grande", veio acompanhado por uma Senhora jovem, a María de J., que conhecera em Cádiz, e por quem se apaixonara, perdidamente, rompendo um casamento de mais de 20 anos, e de que tivera  um casal de filhos. Quando me veio trazer a casa, de carro e na Ponte 25 de Abril, como vinhamos só os dois, sei que lhe disse: "- Não peças demais à María de J.!" Ele sorriu, e sei que andava feliz.
Acabou por ir para Moçambique, com a nova Mulher. E íamos trocando correspondência regular.
Uma noite do início de Outubro de 1988, a primeira mulher do José telefonou-me a dizer que o meu Amigo morrera e que a urna chegava no dia seguinte a Portugal. Tinha falecido na África do Sul, para onde fora de urgência, vindo de Moçambique, por lhe ter rebentado uma úlcera no estômago, fragorosamente. Os operadores já não o puderam salvar. Tinha pouco mais de 50 anos.
Cerca de dez dias depois, nascia no Maputo, um filho póstumo do meu Amigo, a quem María de J. pôs o nome de José J. C. G., Júnior. María de J. morreria cerca de 12 anos depois, em Cádiz. Nunca cheguei a conhecer o Júnior, mas sei que vive em Espanha.

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