Rosalía de Castro
(1885)
Chove em toda a Galiza. Chão e céu estão fundidos, o coração de quatro cavidades pela sua fibra interior, pela chuva. Toda a Galiza é o espaço de um grande, surdo coração. As aldeias, iguais igrejas negras, mais negras, negríssimas, de um negro primordial arrancado pela chuva, cheiram a estábulo humano e molhado. Rosalía de Castro pensa, de luto à porta de sua casa, do seu campo, casa cubo com trigo, uva, celeiro médio, água corrente próxima. Vê chover no verde brando, na terra líquida, na água terrosa; passar, entre água, a vaca constante, o albino adolescente descolorido, o passante cumprimentador, o peregrino lanzudo, o prior sujo, a débil menina sardenta, o pequeno carro lamentoso. Trinam baixo, afogados no ar aguado, os sinos de Bastabales:
(Campanas de Bastabales,
cuando vos oyo tocar
mórrome de saudades.)
Pobreza e solidão. Ânsia, angústia, asfixia de tanta solidão e pobreza circundantes. Uma boca grande, uma simpatia feia, choram, desesperam, soluçam. Rosalía de Castro, lírica galega, trágica, desesperou, chorou, soluçou sempre, negra de roupa e pena, esquecida do corpo, dourada de alma no seu próprio poço. Desconsolação de alma formosa encurralada, isolada, enterrada em vida! Rodeiam-na rebanhos humanos que são como rebanhos não humanos: o mesmo cabisbaixo pesar, idêntico aroma imperecível, igual mansidão e sensualidade resignada. E Rosalía de Castro não se cuida, não pode cuidar-se. Anda louca no seu ritmo interior, fusão de chuva e canto, de sino e coração. Toda a Galiza é um manicómio molhado, que a traz dentro dele. Galiza, cárcere de janelas em condenação da água, névoa, pranto, por onde Rosalía vê somente os fundos cálidos da sua alma.
Neblina sobre a Galiza. Uma névoa que flutua, algodão redondo, nata salgada, parafina sitiadora, sobre as rias; que cerca os muros, que envolve as praias, que tudo torna escuro entre ela, esbranquiçada e suja, desentendida. Entram cegamente os barcos, não entram. Perde-se o homem escasso na opaca totalidade melancólica. Longe, perto, em casa, no seu campo, pela costa deserta, reduzidas as distâncias pátrias, Rosalía de Castro dá voltas largas e lentas em redor das quatro rochas negras, das quatro paredes caladas. Rodeiam-na de perto, de longe, em cada casa só, rocha sozinha, tumbas gémeas, ocupadas ou vazias, de uma eterna tarde galega de defuntos, outras pobres Rosalías, mais velhas ou mais jovens, "viúvas de vivos e mortos, a quem nada consolará".
Juan Ramón Jimenez, in Españoles de tres mundos (pgs. 54/55), Alianza Editorial, 1987.
Uma belíssima evocação.
ResponderEliminarTambém achei um texto magnífico, agora, quando o reli. Porque, aqui há uns anos, quando o li, pela primeira vez, não dei tanto por isso, estranhamente...
ResponderEliminar«Neblina sobre a Galiza. Uma névoa que flutua, algodão redondo, nata salgada, parafina sitiadora, sobre as rias; que cerca os muros, que envolve as praias, que tudo torna escuro entre ela, esbranquiçada e suja, desentendida».
ResponderEliminarÉ um texto magnífico, de facto. Um equilíbrio perfeito entre razão e emoção, que é o que mais me fascina em tudo o que é expressão humana. Obrigada pela partilha.
E ainda, c.a., um ritmo interior excepcional, para texto em prosa. Raros o conseguem...
ResponderEliminarFoi um gosto partilhar. Bom domingo!