domingo, 21 de maio de 2017

Bibliofilia 153


Os manuscritos têm quase sempre o seu lado interessante e curioso, quando não de mistério insolúvel. Não sendo eu especialista na matéria, os poucos que tenho, na minha biblioteca, proporcionaram-me, no entanto, horas aprazíveis de concentração e entretenimento, depois de os adquirir. Na decifração dos textos e diferenças em relação aos eventuais originais (impressos em livro), na tentativa (por vezes, inglória) de identificação dos autores, na interpretação de pequenas notas também escritas à mão, quando existem, nas margens de páginas envelhecidas e devotadas à perpetuação no tempo, feitas por escribas dedicados e anónimos.

Este manuscrito de 36 páginas inumeradas, que ora se apresenta, tê-lo-ei comprado em finais do século XX, num alfarrabista de Lisboa, mas já não me recordo de quanto paguei por ele. Por várias circunstâncias e indícios, sou levado a crer que deve ter sido escrito na segunda metade do século XVIII, sem grande margem de erro. Desencadernado, provavelmente terá integrado uma miscelânea mais volumosa. Em mediocres condições de conservação, apesar do papel ter marca de água e ser encorpado, ao seu corpo íntegro deverão faltar, pelo menos, as duas folhas iniciais.



O conjunto manuscrito contém obras poéticas (vários sonetos, por exemplo) do vimaranense António Lobo de Carvalho (1730?-1787), poeta boémio e fescenino já referido aqui no Arpose (postes de 14/7/2010 e de 26/10/2011), conhecido pela alcunha de Lobo da Madragoa, bem como quintilhas e outros poemas de Nicolau Tolentino de Almeida (1740-1811). O teor das composições é, maioritariamente, satírico. De algumas outras poesias não consegui identificar os seus autores, e é possível que se trate de escritores menores e/ou ignorados, que não chegaram a ter as suas poesias publicadas. Dá-se, finalmente, a transcrição de um soneto (talvez inédito) dirigido a Alexo Botelho, cujo autor desconheço (A. Lobo de Carvalho?), actualizando a sua ortografia:

Ginja peralta falador Botelho
Potro infeliz que segues as belezas
Não te embasbaquem ainda as gentilezas
Porque amor não faz ninho em tronco velho.

Não de escritos dá-lhe um bom conselho
Não têm preço com rugas as finezas
E se este que te dou néscio dispensas
Tira a peruca, vê-te a um espelho.

Verás polvilhada uma caveira
Em que os ossos nos mostram claramente
Entre caruncho uma alma galhofeira.

Casquilho de um vestido unicamente
Ai se o Manique sabe desta asneira
Prega-te no castelo certamente.

6 comentários:

  1. Quanta paciência!
    Ora, que manuscritos tenho eu...nenhunzinho. Bem, há uma ou duas cartas de pessoas com história e que não entram na história; o Yesterday dos beatles em letra redondinha de amiga; as cartas de alguém que me gostou e nunca soube dizê-lo; um caderno de duas linhas, dois tostões repletos de receitas banais e hoje aperfeiçoadas. Pouco valem, mas ao meu coração quanto dizem...
    E depois há ainda alguns dos meus cadernos de tudo em mistura salganhada, sobreviventes de fundas limpezas de consciência; num dia irresistível, bem o sei, seguem os outros e embarcam no contentor da reciclagem. Renova-se o ciclo do papel. Tudo é transitório e desimportante. Por mais que em cada um seja único.
    Tenha um bom domingo:).

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  2. Fantástico! Adorei as aulas de paleografia na Faculdade. E gostei imenso deste soneto. Bom dia!

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    1. Não tive Paleografia e, por vezes, faz-me falta. Mas HMJ dá-me sempre uma boa ajuda, nesta matéria.
      Ainda bem que gostou do soneto, que até faz referência ao Intendente Pina Manique.
      Um bom Domingo, também!

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  3. Respostas
    1. Só tê-lo (ao manuscrito) à mão e folheá-lo, já me foi grato..:-)
      Bom resto de dia!

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