sexta-feira, 10 de abril de 2015

Contos, descrença e leituras


Será que poderei anunciar o fim da minha ingenuidade ou início da minha descrença, em relação à ficção? E, aos contos, em particular. O meu primeiro abandono, em leituras, deu-se com a ficção científica, há muitos anos atrás, ao quinto ou sexto livro lido, desta temática - não gosto. Desertei da infanto-juvenil, quando o meu filho mais novo atingiu a adolescência. E, quase em simultâneo, da BD, onde apenas vim a ter uma recaida proveitosa com Hugo Pratt e o seu Corto Maltese. Não mais. O cinismo e o dogmatismo põem sempre alguns perigos, guardo-me deles, porque nunca se sabe se podemos vir atrás. Mas já Afonso Duarte (1884-1958) avisava: "...Voltar atrás é uma falta de saúde..."
Acontece que, por desfastio, nos últimos 3 dias, me dediquei à leitura de curtas narrativas de ficção. Contos, quero eu dizer. Comecei por Maupassant (Guy de): reli O adereço, depois li Uma "vendetta" que, quanto a trama imaginativa, são soberbos. Mas os assuntos são datados, os sentimentos das personagens, obsoletos, hoje em dia. Já não colam ao leitor.
Depois, patrioticamente, fui aos nacionais. Afonso Ribeiro (1911-1993), com Uma luz nas trevas, deixou-me descalço de piedade e simpatia, pela sua caridadezinha neo-realista. Alves Redol (1911-1969) acordou-me um pouco com O combóio das seis, pelo seu realismo e diálogos movimentados de subúrbios fabris, bem sugestivos. Mas o final do conto (deus meu!) estraga tudo. Finalizei com Aquilino Ribeiro (1885-1963), de que reli: António das Arábias e seu cão Pilatas, que, no seu pendor cinegético e rural, me reconciliou um pouco com a boa literatura nacional; mas que não chegou para me entusiasmar (fiz batota em duas ou três páginas, de intensidade mais onírica, quase no final), por aí além.
Terei de chegar à conclusão que já me vai faltando aquela supension of desbelief - de que falava S. T.  Coleridge - e que caracteriza os leitores com fé? Com boa fé - melhor dizendo. Talvez.
Mas dou-me por feliz, ao pensar que há muitos livros de História, Poesia, Biografias e Ensaio, que nunca li...

7 comentários:

  1. Acontece imenso. Há escritores muito datados. Maupassant, Zola são dois desses casos. E eu gostava tanto, tanto, de os ler. :)

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    1. Sem dúvida. Não sei se será porque o grau de exigência subiu demais a fasquia, ou se a imaginação cistalizou e já não admite senão o real. Que a (boa) Poesia é sempre uma hiper-realidade.
      Mas não é drama nenhum. Como dizia Régio: "Há mais mundos".

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    2. Errata:
      onde escrevi "cistalizou", queria dizer: cristalizou.

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  2. Restam-lhe sempre os romances, que há muitos e bons.
    Eu também não leio muitos contos - já li, em jovem, especialmente policiais e de ficção científica; são géneros que se prestam à versão curta.
    Tenho, no entanto, que lhe reprovar a referência à BD. Aposto que desertou da BD porque só lia "má" BD, o produto editado em Portugal, onde raramente se editava o que de melhor se fazia no mundo.
    Está sempre a tempo de recuperar. Vá, corra atrás do tempo perdido!

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    1. Sobre romances (bons e a ler), tenho as minhas grandes dúvidas, embora alguns "híbridos" (Magris, Manguel...) me tenham dado gosto, a lê-los. Não falo de Simenon, que é um caso aparte.
      Intoxiquei-me de BD, na infanto-juventude: frequentei de tudo - bom e mau. Os "Asterix" foram, para mim, uma das penúltimas referências. Prorque me despedi em beleza, com a "Mad", original e norte-americana, que depois doei (a colecção) ao meu filho mais velho. Que me veio a recompensar, amplamente, dando-me a conhecer Hugo Pratt, em boa hora.
      Sobre o futuro, que não é elástico, vamos a ver - como diz o cego..:-)

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  3. Caro APS, perdoe-me, se puder, este comentário tão fora de prazo. Na altura, senti o impulso de comentar “qualquer coisa”, mas – oh, desgraça minha! -, não me surgiu, então, nada de substante, que valesse a pena acrescentar ao que escreveu.

    Sem nenhuma vontade de limitar o seu “horrivelmente” sincero “desabafo” sobre esse assunto para mim tão presente (“suspension of dis/belief”), algo, partindo desse “post”, foi em mim maturando.

    Mais uma vez, se puder, perdoe-me algum “marketing” pessoal, superveniente neste comentário, pois, em mais de uma dezena de anos perdida neste passatempo inglório, dois terços dos dedos de uma só mão sobram para as vezes que me servi do email, ou de uma caixa de comentários, para publicitar um post meu.

    Por esse lado, ainda bem que este comentário surgiu fora de prazo (espero bem que mais ninguém repare nele). Por outro, creia, se puder, num meu assomo de alegria, ou perto disso, quando esbarro em posts que em mim despertam alguma reacção. Bolas! Isso vai sendo cada vez mais raro. Adiante.

    O tal “meu marketing pessoal” resultou nisto: http://indicios.blogs.sapo.pt/195873.html.
    (demasiado longo para caber numa caixa de comentários, espero que, subjacente a esta elegia demasiado óbvia, sinta presente, no mínimo, alguma da minha gratidão por tanto que tem vindo a partilhar com o mundo, enfim, com esta virtualidade incapaz de satisfazer a maior parte de nós – oh, desgraçados!, talvez ainda feitos de “carne e osso”).

    P.f., enquanto puder, persista nesse seu caminho.
    Abraço/JQ

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    1. Às vezes, acaba por valer a pena revisitar postes que fizemos, como foi o caso, porque ainda estou "nesta", de desapego pela ficção.
      Tenho acompanhado o seu "Indícios" e tinha lido o seu poste, que identificou. Vonegut tem um fã no meu filho mais novo, que até me ofereceu um livro dele. Iniciei-o, mas não acabei... Não sei se é exigência ou descrença, mas raras vão sendo as prosas que me dão gosto. Cumpro presentemente o III volume de "Guerra e Paz", como dívida votiva a minha Mãe que, muito instada por mim, em 1957, lá esportulou 150$00 para eu ter o livro - que só agora irei acabar, em junho talvez, 58 anos depois...
      O Arpose já terá tido melhores dias, como vontade pessoal, que, às vezes, é só teimosia de não desistir, mas agradeço as suas palavras amigas de estímulo que foram bem-vindas. E ajudam.
      Cordialmente,
      Alberto Soares

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