domingo, 12 de setembro de 2010

O Albergue espanhol


Quando em 1996, vendi ao meu amigo Palma o apartamento que tinha na Caparica, já a minha relação com o Engenheiro Silva Mascarenhas era próxima e agradável. Vizinho e bastante mais velho do que eu, casado e sem filhos, falava, estremecidamente, de um sobrinho que seria o seu futuro herdeiro. Este seu familiar era enfermeiro-chefe num dos Hospitais Civis de Lisboa. E, num sábado de 1995, lembro-me que vim a conhecer este profissional de saúde, de nome Casimiro, que, desde logo e intimamente, apelidei de "Poil de carotte". Além de ruivo, era muito baixo, falava muito pouco, era míope e bisonho. Contrastava com o Engenheiro que era extrovertido, moreno, altíssimo e simpático. Concluí que era sobrinho de afinidade, porque a Dª. Amélia Mascarenhas também era pequenina e míope.
Perdi-lhes o rasto até Junho passado, quando o meu amigo Palma, poeta naïf de horas vagas e publicitário de algum sucesso, me telefonou com voz sobressaltada e suplicante, perguntando:"- Será que posso aboletar-me, na tua casa de Lisboa, por uns dias?" E eu preocupado:"- Quando?" Retorquiu-me: "- Podíamos almoçar amanhã, que eu explicava-te..." Anuí.
Pensei que era negócio de saias. Palma já ia no seu quinto caso conjugal, com magnética propensão para estrangeiras. Ainda conheci, bem, a primeira esposa dele, que era sueca, intelectual, álgida e séria. Elegantíssima no seu metro e noventa. Depois, das restantes companheiras de Palma, já não me recordava de nenhuma...
Fomos almoçar ao "Bueno" uns "tacos" acompanhados de uns feijões vermelhos muito apurados. E um "Muralhas", fresquíssimo, para atenuar o ardor. Rui Palma pôs-me ao corrente da penosa situação. Ao longo de quase duas horas, contou-me tudo, tim-tim por tim-tim. Passo a sintetizar o que ele me disse, antes de eu lhe entregar a chave do apartamento de Lisboa, e de nos despedirmos.
O Engenheiro Silva Mascarenhas morrera há dois anos. Um ano depois faleceu a esposa, Dª. Amélia, roída de saudades. Em finais de 2009, o enfermeiro-chefe Casimiro ( a quem eu chamava "Poil de carotte"), sobrinho dos falecidos, tomou posse do apartamento da Costa da Caparica, colado ao do Rui e no mesmo 8ºandar, e começou a habitá-lo. Pouco depois, a Mãe de Casimiro, transportada em maca, passou também a lá viver.
De seguida - e ainda segundo o meu amigo Palma - vieram 2 brasileiros corpulentos que entravam e saíam às mais diversas horas. Iniciaram-se, por essa altura, ruídos nocturnos intensos, diariamente, que oscilavam entre o samba e o martelo-pilão, a macumba e o candomblé.
No primeiro andar, vivia uma senhora balzaquiana exuberante que passou a vir quase todas as noites, tocar à campaínha da ex-casa do Engenheiro, agora habitada pelo "Poil de carotte", respectiva mãe paraplégica, e dois brasileiros corpulentos. O meu amigo Rui Palma contou-me ainda que a dama tinha o marido quase paralítico, por causa de um AVC. Ao andar, arrastava, interminavelmente, a perna esquerda. Inicialmente, o meu amigo pensou que a balzaquiana vinha lavar a mãe do enfermeiro Casimiro, e prepará-la para adormecer. Mas não, a referida senhora ficava por lá até às 3 ou 4 da manhã, e o samba intensificava-se... Palma já não conseguia dormir, em condições, havia mais de uma semana - estava desesperado, insone, irritadiço e muito agressivo. Deixara de escrever versos e as frases publicitárias, de que precisava para viver, já não lhe saíam. Ia vender o andar que fora meu, e onde no apartamento, ao lado, havia a presença e paz celestial que emanava do casal Mascarenhas, de boa memória. A casa era agora o que se chama um "albergue espanhol" ou, talvez mais propriamente, um albergue luso- brasileiro...Pobre do Rui Palma!... Lá lhe entreguei a chave do andar de Lisboa e disse-lhe que estivesse à vontade, e lá ficasse o tempo que fosse preciso.
Mas duas semanas passadas, o meu amigo veio devolver a chave e agradecer-me. Vinha mais calmo, o enfermeiro-chefe Casimiro comprara-lhe o andar e ia deitar abaixo a parede separadora, para alargar as instalações...

2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto.
    Também já houve aqui no meu prédio um albergue brasileiro. Mas eu só dava por ele na rua - janelas abertas e música aos berros.
    Um amigo meu teve um no andar por baixo do dele. Parece que era o inferno na terra...

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  2. Obrigado,MR.
    O chinfrim começou a estender-se, seja ele luso, afro, russo ou brasileiro, desde há uns anos a esta parte...O silêncio e a paz são excepção,normalmente.

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