domingo, 10 de julho de 2011

Linhagens 14

Memórias da(s) escola(s)

Nestas últimas memórias fecharemos o ciclo, evidenciando o contributo das várias escolas e, sobretudo, de alguns professores que deixaram marcas nas linhagens pessoais. O mais curiosos de tudo, e também com o olhar pela janela do aposento, é o facto de ter passado a vida na escola sem nunca ter engraçado com o sistema em si. Sempre gostei, e privilegiei, uma parte deste sistema: a procura do saber, na sua vertente de receber e dar, elemento matricial tão arredado do nosso quotidiano.
Comecemos, então, pelo princípio, ou seja, da minha escolinha da aldeia, inaugurada em 1937, e que, em 1957, ainda era "católica", tendo mudado, depois de muitas guerras, para uma escola chamada "não confessional".
Felizmente, o meu primeiro professor, que tinha um apelido francês - Jardin - era uma pessoa liberal e não vivia na aldeia. Houve, no entanto, uma professora beata e residente na aldeia que levou os pais da minha amiga protestante a tranferir a filha para uma escola na cidade. Durante a frequência da chamada "escola do povo [Volksschule]", passei pelas oito salas no primeiro andar do edifício na imagem acima. Os primeiros quatro anos nas salas viradas para o pátio. Os restantes quatro na ala oposta com vista para o meu quintal e a minha casa. Do vice-reitor, com residência ao lado da escola, ficou a memória da música, porque, à tarde, depois das aulas e do meu quintal, ouvia o professor Slatosch a tocar piano, o que me encaminhou, eventualmente, para o gosto pela música.
Para além dos ensinamentos básicos de leitura, escrita e cálculo, o conceito de cultura geral partia, designadamente no que à História e à Geografia diz respeito, de uma saudável abordagem da cidade para o país e o mundo, dispensando-nos, em tenra idade, de preciosismos recentes, como a "interpretação" de tabelas, estatísticas e quadros. No entanto, nas linhagens de uma preparação suplementar para a vida ficaram as memórias das aulas de lavores, de trabalhos manuais e de cozinha. Nas aulas de lavores, depois de ensinar os pontos a bordar ou tecido a costurar, a professora passava o resto da aula a ler-nos histórias. Duplo ensinamento!
Nas aulas de trabalhos manuais, voluntárias e fora do horário normal das aulas que eram da parte da manhã, aprendi a fazer cestos em verga, trabalhar com barro e madeira, conceber e executar estojos para livros, cobertos de papel marmoreado. Com arame em banho de prata executei os primeiros colares e anéis, escolhendo as pérolas artificiais de acordo com a fatiota da altura. Bons tempos!
Nos últimos dois anos, i.e., na 7ª e 8ª classes, as raparigas iam para uma escola da cidade para as aulas de cozinha, os rapazes passavam o dia com o reitor, na horta da escola.
Os ensinamento de cozinha, de que ainda guardo os apontamento de receitas, permitiram-me, ao longo da vida, adaptar-me a universos culinários diferentes. Olhando para o prato final, entra em acção todo o percurso anterior, imaginando como cada ingrediente se poderá ter conjugado para dar aquele resultado. Depois é só ir experimentando para aperfeiçoar. Foi assim que "trouxe" para casa uma receita de ensopado de borrego que, em tempos, comemos na "Casa Amarela" do outro lado do Guadiana, em Mértola.
Concluída a 8ª classe da "escola do povo", os alunos escolhiam uma profissão e entravam na aprendizagem, de três anos, numa empresa, com aulas semanais teóricas nas chamadas escolas profissionais. Os mais afortunados já tinham passado, após a conclusão da 4ª classe, para o liceu ou um curso intermédio, chamado "escola real [Realschule]", para um acesso ao ensino superior ou uma carreira técnica.
Ora, a conclusão da escola básica coincidiu com uma viragem na política educativa na Alemanha. Com uma antecipação de décadas, resolveram criar um sistema de "novas oportunidades" para repescar alunos da escola básica que, por falta de meios, não puderam, na devida altura, ingressar no ensino secundário. Com o fim do ensino secundário - liceal - pago e, sobretudo, o fornecimento, gratuito, de todos os manuais escolares, abriu-se o caminho para prosseguir estudos.
Com um nono ano de preparação - em que aprendi coisas tão úteis como dactilografia, a sério (!) com dez dedos - e uma prova final de aptidão concluída com êxito, o pai ainda não se convenceu, argumentando que as filhas mais velhas não tinham tido essas oportunidades. Lembro-me, vagamente, de reuniões familiares, presididas pelo meu avô materno, para quebrar a resistência do genro, assim como convocatórias para o liceu que, em princípio, me acolhia, dando o remate final na decisão do pai. Assim, prossegui os estudos para além do grau que o pai, certamente, ambicionava para mim. São dívidas de gratidão!
O liceu foi, durante quatro anos e num regime reforçado, o espaço da aprendizagem do trabalho minucioso e, sobretudo, da formação de leituras, gostos e aptidões que alguns professores souberam implementar. Para as almas dedicadas ao "sucesso escolar", ficará o resultado final: de 70 alunos passaram 14 no exame final.  Para mim, gravou-se-me na memória o professor de música que nos levava para a aula magna do liceu e, depois de aulas sobre notação musical, se sentava ao piano, ou puxava pelo órgão, e se punha a tocar. Em vez de esperar que conseguíssemos seguir todos os passos na pauta, interessava-lhe despertar o gosto pela música. Foi receita que resultou em pleno!
De incursões pela língua e cultura eslavas, assim como de sociologia e psicologia na Universidade de Colónia, ficaram apenas registos formais e mentais de realização inconsistente. Da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, para além de uma permanente desconfiança quase genralizada pela opção de seguir Estudos Portugueses, ficou o mais valioso para o resto da vida, o encontro com HN e da sua capacidade de dissertar sobre livros e a humanidade.
No grau seguinte, encontrei um professor que, quase pela primeira vez, achou que o facto de ser de origam alemã não era pecado. Reconheceu as minhas capacidades para trabalhos minuciosos. Ficaram, pois, para memória o Professor F. Cristóvão e a "nova" amiga Margarida.
Termina-se com o último encontro do "mestre", aquele que, depois de tanto caminhar, nos aceitou - com seu faro - para fazer aquilo que nos era destinado. Estudar "as letras (...) sinais úteis (...) melodia interior."
Nada do que ficou dito se realizou, a partir de  determinada altura, sem o apoio e o recurso a um Equilíbrio discreto, tal com outros encontros que me têm enriquecido ao longo da vida. E, para finalizar, remeto para o hino dos estudantes, citando o essencial:

"Vivat Academia,
Vivant professores (...)"

Post de HMJ

Dedicado aos benfeitores evidenciados

6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Gostei imenso desta série que infelizmente se acaba. espero que dê lugar a outra. :)
    Tenho boas recordações (as más foram-se...) de todas as escolas por onde passei, principalmente pelas amigas que fiz e que vieram pela vida fora. As minhas amigas mais antigas conheci-as na primeira escola onde esive até aos dez anos: uma aos três anos e a outra penso que aos sete. Dois anos depois, noutra escola, conheci outra amiga. Mas a minha maior amiga 'encontrei-a' em 1969.
    Nas escolas por onde andei, até à Universidade, só tive professoras malucas e/ou recalcadas que nos infernizavam a vida. Havia um caso ou outro (raro) menos anormal. Acho que foi esta experiência que me levou a nunca ser professora.
    Mas tive dois professores que me marcaram, professores e seres humanos excepcionais: António Borges Coelho foi meu explicador de Filosofia e nesta área era um espectáculo; e o Padre Manuel Antunes - não conheço ninguém que tivesse sido aluno dele e que não guarde boas memórias. Acho que assim vale a pena ser professor.

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  4. Para MR:
    ainda bem que gostou. Pode ser que tenha outra inspiração, lá para o Outono. Talvez curiosidades culinárias. Ontem, à noite, voltei a ver o "livro de conselhos e receitas" da antiga escolinha. Tem piada!

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  5. A resposta anterior era, obviamente, de HMJ.

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  6. Professores tive bons e maus. Recordo-os! Uns tento imitar; outros recordo-os... para os não copiar.
    O professor deve descobrir o interesse do aluno e fazer com que ele também goste de aprender... O professor também recorda os seus alunos!

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