domingo, 7 de março de 2010

Salão de Recusados XI : José Mattoso



De José Mattoso (1933) e de um seu depoimento intitulado "Uma ideia para Portugal" vamos transcrever alguns excertos que nos parecem significativos.

"A História só sabe o que aconteceu. Ignora o futuro e o condicional. (...) Haverá ainda lugar, no mundo de hoje, para uma concepção humanista da existência? Seja qual for o sentido que demos ao conceito, o que quero dizer é que não acredito numa ideia para Portugal senão baseada no respeito pelo Homem e pela sua dignidade. O domínio da técnica ameaça o Homem porque dá o poder mas não garante o seu bom uso. (...) Só conheço uma resposta: aquela que se deduz da «conversa» entre Javé e Abraão antes da destruição de Sodoma e Gomorra: «Será que vais exterminar ao mesmo tempo o justo e o culpado? Talvez haja cinquenta justos na cidade: matá-los-ás a todos? Não perdoarás à cidade por causa dos cinquenta justos que nela podem existir?» (Génesis.,18.23). Só Deus sabe que proporção de "justos" no conjunto de cada cidade é suficiente para ela subsistir. Pelos vistos, Javé até se contentava com dez. Mas ninguém sabe.

O que a vida me tem ensinado é que existem mais "justos" neste mundo do que se pode saber através dos jornais. Há muitas formas de santidade oculta, nem que seja por meio do sofrimento assumido, do apaziguamento, da noção do dever. A religião católica aliada ao individualismo atrofiou o conceito de "justo". A história do Génesis propõe que se creia no efeito da acção do "justo" sobre a comunidade a que pertence em virtude do princípio de solidariedade. Os "justos" são a porção viva e sã, mas escondida, da comunidade a que pertencem. Garantem a sua capacidade de regeneração. O fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos "justos" que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela "justiça". Talvez isso sirva de antídoto contra a desilusão que nos causam os poderosos da finança, da política ou do espectáculo."

in "Público" de 6/3/2010.

3 comentários:

  1. É interessante este excerto que escolheu mas, na minha humilde opinião,não é de História que o Professor está a falar mas de ética, talvez mística. O Professor José Mattoso é um caso especial de Beneditino/historiador/ Homem/historiador. Li artigos interessantes de José Mattoso mas um dos seus livros: "A Escrita da História, Teorias e Métodos" assustou-me. Atenção tenho muito respeito por ele, pela sua sapiência, pela pessoa humana que é, pela disciplina mental e física que faz recorrendo às artes orientais. É um homem que gosto de ouvir.
    E mais uma vez, os "justos" que foca Camus "Na Queda". :)

    ResponderEliminar
  2. É verdade: os justos...
    E, não sei de onde, uma citação (não sei de quem): " É preciso temer a cólera dos justos."

    ResponderEliminar
  3. Comprei hoje, na Fnac, um livro de Camus com dois contos, cuja existência ignorava: «Jonas ou l'artiste au travail» e «La pierre qui pousse». O de Jonas começa com uma citação da Bíblia: «Jetez-moi dans la mer... car je sais que c'est moi qui attire sur vous cette grande tempête». Lembrei-me disto agora, por causa da alusão a Sodoma e Gomorra. Já são duas citações da Bíblica, hoje (talvez três, contando com a sua)...

    ResponderEliminar