sábado, 27 de março de 2010

Ducentésimo : quase uma fábula



Quando Fernanda passou no exame de 4ª classe, o Tio Joaquim deu-lhe uma gaiola grande com um canário-flauta, daqueles que cantam muito bem. O primeiro cuidado da menina, logo que acordava, era ir ver o pequeno pássaro verde-amarelo e castanho que desde que o sol nascia começava a trinar. Aprendeu a cortar-lhe as unhas, a esperar a muda da pena, a borrifá-lo de água fresca, no Verão, para que ficasse mais luzidio e limpo. Depois, ficava a vê-lo espanejar-se das gotas de água que perlavam as suas penas. Todas as semanas limpava e lavava o fundo da gaiola, para que tudo ficasse asseado. E soprava com cuidado a caixinha dos minúsculos cereais para que as cascas vazias saíssem e ficassem apenas as que ainda tinham miolo. A menina foi crescendo e o canário, envelhecendo. Entretanto, o Tio Joaquim morreu. Quando Fernanda fez catorze anos, na festa de aniversário, o primo Pedro deu-lhe, de presente, uma canária muito jovem. Era airosa, elegante e esguia, de um amarelo puríssimo e total, mas - como todas as canárias - não cantava.

Fernanda tinha aprendido e visto, em casa do Tio Joaquim, como ele aproximava em duas gaiolas um casal de canários, para habituá-los à presença, um da outra, e reciprocamente, para depois virem a acasalar. Sempre em gaiolas isoladas, durante algum tempo. E, depois, o Tio Joaquim abria as duas portinholas que havia em cada uma das gaiolas para que, finalmente, as pequenas aves coabitassem. A menina colocou então as duas gaiolas, uma junto à outra, e esperou. A princípio, a canária era esquiva e assustadiça. Piava e fugia para o lado oposto à gaiola do velho canário. Este, pelo contrário, mostrava-se agressivo e avançava, ameaçador, até às grades junto da gaiola da jovem e bela vizinha. E passou-se assim uma semana. Gradualmente, o canário foi ficando mais tranquilo e a canária amarela mais curiosa e contígua. Até que Fernanda concluiu que era tempo de juntá-los, na mesma e única gaiola. E assim fez.

No fim dessa semana, os Pais e Fernanda tiveram que deslocar-se a outra cidade, para fazer uma visita de família. A menina reforçou a ração de paínço e milho alvo na gaiola e abasteceu, com mais um recipiente de água, a nova casa dos passarinhos. Iam estar fora dois dias e ela não queria que lhes faltasse nada.

Fernanda, logo que regressaram a casa, correu para a cozinha para matar saudades dos canários. Já perto, só via a canária, muito repimpada, no poleiro. Aflita, subiu a um pequeno banco vermelho, e deparou-se-lhe, então, o pequeno corpo do seu querido canário, inerte, no fundo da gaiola. Tinha morrido. Duas lágrimas caíram-lhe dos olhos, mas logo uma divina ira adolescente a possuiu. E metendo a mão pequena pela portinhola da gaiola de arame, retirou dela a esbelta canária amarela, e furibunda deu-lhe um grito. O coração da canária batia, agora, descompassado, entre os dedos de Fernanda. E os pequenos olhos da avezita começaram a abrir e a fechar veloz e ritmicamente. Emocionalmente exausta, a menina largou então a canária no interior da gaiola, mas a canária adornou, definitiva, também e, depois de vários espasmos, ficou também inerte junto ao corpo morto do velho canário.

Os canários são pássaros muito sensíveis e nervosos. Muito mais tarde, quando veio a ler a "Carta de Guia de Casados", de Francisco Manuel de Melo, ao deparar-se com o que o escritor diz sobre os três tipos de casamento (jovem com jovem, velha com jovem e velho com moça - casamento da morte, lhe chama, neste caso), Fernanda lembrou-se, com saudade e tristeza, do casal de canários da sua adolescência e apercebeu-se que tinha feito "justiça" com suas próprias mãos, e com o seu grito. Mas, entretanto e para sempre, nunca mais quis ter canários...

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