Uma manhã, no dia seguinte a uma pesca proveitosa em que centenas de atuns foram capturados, eu fui ao mar para tomar banho. Primeiro, e para fruir a luz admirável daquele dia, avancei pelo pequeno paredão do porto. De imediato, ao baixar o meu olhar, apercebi-me, a pequena distância, sob a água maravilhosamente lisa e transparente, um horrível e transparente caos que me fez estremecer. Coisas duma vermelhidão enjoativa, massas de um rosa delicado ou de um púrpura profundo e sinistro boiavam jacentes, por ali... Reconheci com pavoroso horror a acumulação das vísceras e entranhas, de todo um rebanho de Neptuno, que os pescadores tinham rejeitado para o mar... Eu não podia fugir nem suportar o que via, porque o desgosto que este massacre me provocava dividia-se, em mim, à vez, entre a sensação da beleza real e singular desta desordem de cores orgânicas, destes ignóbeis troféus de glândulas e despojos, donde se evolavam ainda correntes sanguinolentas (...) O olhar admirava aquilo que provocava horror e náusea à alma. Dividido entre a repugnância e o interesse, entre a fuga e a análise, eu esforçava-me por pensar naquilo que um artista do Extremo-Oriente, um homem com o talento e a curiosidade de um Hokusaï, por exemplo, poderia extrair deste espectáculo.
Paul Valéry, in Variété III (pg. 237).
Nota: Valéry evoca, neste excerto que traduzi, o resultado, no dia seguinte, de um copejo de atum, no porto de Sète (Mediterrâneo). A foto, que encima este poste, é de uma acção de copejo no Algarve.
Este texto lembrou-me uma descrição, muito realista, sobre o tema, em " Os Pescadores ", de Raul Brandão.
ResponderEliminarBoa noite.
Raul Brandão, um dos meus autores de referência. Ainda lhe conheci a Viuva, Angelina ("Bibliofilia 28", de 8/9/2010).
EliminarO seu comentário, Maria Manuela, fez-me ir reler, a "Os Pescadores", a parte correspondente ("Ponta da Baleeira"). Um magnífico texto, como quase sempre.
Boa noite.
A pesca do atum deve ser um espetáculo horrível.
ResponderEliminarGosto bastante desse livro de Brandão.
Vi, há tempos, um filme sobre o copejo que me impressionou imenso. Ainda para mais era a cores...
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