sábado, 13 de fevereiro de 2016

Da leitura (10) : o livro e o marcador


Eu queria dar uma última oportunidade ao homem, porque até simpatizo com ele, no seu ar canhestro ao dar entrevistas, na sua aparente simplicidade desarrumada, no seu discurso gaguejante e pouco objectivo.
E a oportunidade surgiu. Numa loja próxima do Largo do Rato, que se dedica, principalmente, à venda de material informático usado, há uma pequena secção de livros, daqueles de capas berrantes e que são efémeros best-sellers por cerca de um mês, e que também podem ser vistos nos transportes públicos a serem lidos por leitores anónimos e muito variados... E, de repente, vejo numa das estantes um dos mais badalados títulos de Patrick Modiano (1945), publicado antes mesmo (1997) de ele ter sido premiado com o Nobel, em 2014. A obra, Dora Bruder, foi publicado pela Edições Asa, em 1998, e estava ali, naquele improvável alfarrabista, ao preço simbólico de 50 cêntimos, ainda por cima com o marcador original e tudo...
E eu, que tinha lido, desalentadamente, Pedigree (2004), que me parecera um relatório repetitivo e cheio de nomes, resolvi dar uma segunda e última oportunidade ao homem, e lá trouxe o livro para casa, para o ler e tirar conclusões sobre o romancista francês. De uma coisa, estou eu certo: o homem sabe escrever, e contar. Mas é sempre a mesma sensaboria desinteressante, o itinerário das mesmas ruas de Paris por onde lhe passeia a memória, o registo desordenado e repetitivo, numa burocrática nostalgia que mais se assemelha a um balanço seco de um contabilista de uma firma envelhecida no tempo. Quanto a Modiano, resumindo, fiquei vacinado...

P. S.: da leitura, retenho o mais interessante, que é uma carta, comprada por Modiano a um alfarrabista das margens do Sena, e que ele transcreve na íntegra (pgs. 104/9), quase no final da novela Dora Bruder. Trata-se de uma missiva de recomendações e despedida de um tal Robert Tartakovski, judeu, em trânsito para um campo de concentração, onde veio a morrer. O mais curioso é que ele não tem nada a ver com Dora Bruder e nem sequer é seu parente ou conhecido... Essa carta, em itálico, é assim uma espécie de colagem despropositada, um apenso sem justificação. Embora um documento humano tenso de desespero com grande qualidade dramática. Penso que é a melhor parte do livro... Hélas!

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