terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A ara panteísta


O pequeno centro comercial suburbano tinha, em dois dos seus quatro cantos, triângulos côncavos, inicialmente cobertos por um relvado ralo e descuidado. Embora com ressalto, um deles era quase um monturo onde os cães se aliviavam e a rapaziada mais selvagem costumava depositar embalagens vazias daquelas plásticas que contêm guloseimas gordurosas, na boa tradição e causa da obesidade americana e nacional. Mas, pela Primavera deste ano, começou lá a crescer um pequeníssimo jardim...
A mulher, quando vou cedo comprar o jornal, costumo vê-la, quase sempre. Já velha, composta mas com pobres roupas, começa por vasculhar os dois contentores do lixo, com a ajuda de um pau comprido, manejado pelo braço direito, tendo no esquerdo um saco para onde mete pequenas coisas de duvidosa qualidade, e uso, que vai retirando dos contentores. Mas foi ela que começou a plantar o jardim triangular num dos cantos do centro comercial, e onde já nasceram formosas flores.
Depois da pesquisa minuciosa do lixo, a mulher, invariavelmente, dirige-se ao seu canteiro florido. Ajeita algumas hastes de plantas, parece acariciar algumas flores mais juvenis, como algumas mulheres fazem nos altares das igrejas, que estão a seu cargo. Depois queda-se, por uns bons minutos, numa contemplação silenciosa e votiva da sua natureza privada, que, talvez amorosamente, foi criando. E que lhe pertence por direito de tratamento e zelo. Eu passo respeitosamente ao largo, em silêncio que não desperte essa paixão tranquila e comungante com a natureza renascida.

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