domingo, 19 de dezembro de 2010

Osmose (4)


Abriu os olhos, ainda cedo (insensato sono, pensou). Restabeleceu as coordenadas - dia 25. E ficou mais um pouco. Sabia que pensava e trabalhava melhor depois do caos: a reerguer tudo outra vez. Às vezes, noutra perspectiva, diferente.
Levantou-se, e seguiu para a cozinha, onde reaqueceu o café que sobrara da Consoada. Encheu a pequena chávena, intacta e limpa (a do Sérgio, o genro purista, parco de alimento, vegetariano, quase sempre...), e olhou as três pilhas de louça, por lavar. Mas não desanimou.
Porque é que a Lígia se teria apaixonado pelo Sérgio? - pensou. E voltou a olhar o caos harmonioso de copos, talheres e louça, à sua frente. Acendeu o primeiro cigarro da manhã, e esticou as pernas, com preguiça inocente. Pouco depois, voltou ao quarto onde o odor da noite ainda dominava uma quentura de penas. Com vagar, percorreu de memória, as lembranças do jantar da véspera. Sentiu sede: se calhar, não tinha demolhado o bacalhau, suficientemente. Mas estava tudo bem. Os filhos e a filha tinham confirmado. E já não tinham idade para lhe mentirem. Seguiu, então, para a casa de banho.
Fez o balanço final, ao dia 24. De manhã, tinha feito os 3 telefonemas essenciais. Demorou mais, de memória, a recordar as palavras de Manuel. E uma ternura súbita eriçou-lhe a pele e alisou-lhe a testa, quando se olhou ao espelho. Concluiu, quase tranquila, que Manuel tinha a mesma voz de há trinta anos. Estavam ambos sós, agora, mas já muito longe, um do outro. Só nessa altura Maria Isabel se decidiu a abrir, decidida, as torneiras, para tomar banho.

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