domingo, 5 de dezembro de 2010

Letras sobrepostas


Como ao vestir, de novo, roupa de véspera o corpo se sente incomodado, e um desconforto se instala, quando é Verão, porque a transudação parece ter vidrado o tecido já usado; ou, se for Inverno, a pele se ressente da aspereza engelhada e de um odor a flanela húmida, assim a revisitação de obras acabadas ou antigas - que fizemos - nos provoca, também, um estranho desconforto: parece que já não cabemos nelas. E, se as queremos re-criar, cerzi-las de novo, é trabalho difícil, aturado, a mais das vezes, próximo do insucesso. Por essa, e outras razões, lhe chamei, em poste anterior: arte menor.
Porque se, muitas vezes, a emoção que as ditou, ressurge, já não há natural invenção, mas acrescento de experiências e tempo - perdeu-se a pureza original. Se o primeiro verso nos é dado (e, às vezes, também o segundo), ele não volta mais. E, se o não fixarmos ou anotarmos (numa rua, num encontro, num café, num autocarro) de imediato, ele perde-se da nossa vida e nunca mais se cruza connosco.
Por outro lado, revisitar obras antigas, acabadas na sua imperfeição, para as re-criar ou corrigir, tem os seus perigos traiçoeiros. Porque já não existe a força interior que as ditou, muita embora ressurja, normalmente, a paixão, a reflexão ou a ternura num dejà vu enganador, num jogo de espelhos de falsas imagens nebulosas. Mesmo que sejam elegias, cristalizadas no irremediável, ainda sentidas e presentes na sua eternidade fatal - sem retorno. A erosão do Tempo diferiu-as, para sempre.

3 comentários:

  1. De qualquer modo, as (repescadas) que tem apresentados são muito bonitas.
    E este quadro de Juan Gris uma maravilha que não conhecia.

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  2. Obrigado, MR.
    Creio que o título da obra de Gris é "Le livre ouvert".

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