domingo, 3 de julho de 2011

Linhagens 13

Memórias do lado paterno: a casa, o quintal e o Reno

A reconstrução da Alemanha no pós-guerra mudou, entre outros, o aspecto do património edificado, sobretudo nas zonas destruídas pelos bombardeamentos, deixando memórias e aprendizagens inesquecíveis e úteis para o resto da vida. Da casa inicial reproduzida em baixo, com o tijolo característico, ficaram imagens vagas, preenchidas com episódios curiosos.
Para além da destruição do telhado e danos no anexo, durante os bombardeamentos com bombas incendiárias entre 1944 e 1945, a casa sobreviveu, assim como as pessoas que se acolheram na cave nas horas de maior aflição. No anexo, onde havia espaço para a criação de aves e porcos, encontrava-se um caldeirão enorme que servia para lavar a roupa e aquecer a água para os banhos de imersão. A tampa era usada para aquecer o toalhão de banho e, embrulhando as crianças, o pai estava à espera para as levar rapidamente para a casa principal, sem resfriamentos. Iam direitinhas para as camas aquecidas com sacos de água quente. Mimos singelos! O problema do aquecimento, na altura da falta de "briquetes" e com a ocupação aliada das minas de carvão - na zona do Ruhr - deu lugar a uma invenção linguística, substiuindo a palavra "roubar" por um eufemismo chamado "fringsen". Ora, aqui vai a explicação. A palavra vem do Cardeal Frings que, perante os rigores do inverno e a falta de conbustível, aliviou a consciência do seu rebanho, dizendo que o "roubo de briquetes" dos vagões altamente vigiados pelos aliados não era pecado. A partir daí  e durante o período do pós-guerra, o roubo para a subsistência passou a chamar-se "fringsen". Em jeito de homenagem, segue uma foto do Cardeal Frings com Konrad Adenauer.

No entanto, o abastecimento de víveres obrigava a outros expedientes, alguns inofensivos, outros sorvedouros de objectos de estima, guardados durante a guerra como os pequenos enxovais. Da "lavoura" da aldeia ficou a memória dos bons e dos maus. Destes sabe-se que "dispensavam" batatas a troco de talheres - de prata ou com banho do mesmo - e serviços de porcelana. O episódio mais engraçado pertence, todavia, aos bons. Os donos de uma quinta enorme fora da aldeia conheciam o pai pelo facto de lhes ter levado, na sua juventude, o jornal da igreja todas as semanas. Foi a eles que recorreu para arranjar um bacorinho a fim de o criar no nosso anexo e servir de base, futura, a uma alimentação mais abastada. Meteram o dito no saco de serapilheira para não criar suspeição. A meio caminho, certamente assustado com os balanços da bicicleta, o pai sentiu as costas quentes e molhadas. O dito bacorinho "aliviou-se" e a história ficou para memória futura.
Na década de 50 do século passado, a casa alargou-se, ficando com um acrescento, dando lugar a um edificado em forma de L. Ainda hoje aproveito as aprendizagens colhidas durante o tempo que vivi numa casa em construção. Fiquei com noções de construção, dos fundamentos até ao telhado. Nos interiores, assisti à colocação do estuque, do soalho de madeira, ajudei na pintura, na colocação de candeeiros e do papel na parede. Houve uma fase em que nos levantávamos num determinado espaço que, durante o dia era desmanchado - camas, etc. - para nos deitar noutro lugar da casa ao fim do dia. Portanto, montar e desmontar camas ficou nos "genes" como actividade corriqueira.
A foto da casa é o símbolo do acumular de memórias que, não obstante o pesado dever de a esvaziar e entregar a estranhos, na viragem para o séc. XX e fruto da perversa evolução da sociedade, nada conseguirá anular.
O quintal da casa, atrás e numa área de 1000m2, era, no início, o espaço próprio para assegurar a subsistência. Nele se criavam: batatas, feijões, cebolas, couves, espargos  (!), aipos, etc. para além de morangos, cerejas, maçãs, ameixas e outros frutos. A Primavera era para trabalhar a terra. O Verão para colher e guardar para o Inverno. Portanto, na cave guardavam-se as batatas, cenouras, etc., a fruta em calda, assim como as leguminosas em frascos, e os doces para barrar o pão ao pequeno almoço. Lentamente, a partir dos anos 60, o quintal passou a dividir-se ao meio, o fundo para a horta, aumentando-se o espaço de lazer com relva e flores.
Com efeito, os limoeiros, assim como a vivência em andares sem quintal, pertencem a um conhecimento tardio. Foi preciso mudar para Lisboa e a outra banda para, num andar, tentar recuperar o espaço verde perdido recriando novas plantas e "acarinhando" outras vindas do quintal de origem, como o lilaseiro, cujo "neto" já encanta uma varanda no Porto. A propósito de citrinos, consta ainda hoje nos anais da família um episódio engraçado. O avô paterno escolheu, nos idos dos anos 50 do século passado, uma laranja (!) como presente de Natal para oferecer às netas, símbolo de riqueza para ele que, da nossa parte, acolheu pouco entusiasmo na altura.
Ao enquadrar todo esse espaço estava o Reno, rio memorável de lazer e ameaça. No Verão, era a nossa piscina ao ar livre. No Inverno, depois de as chuvas e as cheias terem alagado o terreno até aos diques que defendiam a aldeia de enchentes, a água gelava e os diques tapavam-se de neve. Era a altura de deslizar no gelo e descer os diques com os "tobogans".

Brincadeiras simples, aprendizagens enormes, memórias para o futuro.

Post de HMJ

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