segunda-feira, 19 de abril de 2010

Almeida Garrett : retrato em palavras



A iconografia portuguesa de cidadãos ilustres é pobre, se comparada com a de muitos outros países europeus. Camões tem apenas dois retratos tirados do natural e considerados fidedignos, creio. De Sá de Miranda existe apenas uma gravura que o retrata, ainda em vida. Claro que há depois as efabulações e fantasias imaginadas, mas não é o mesmo. Felizmente, existe uma descrição física (e não só) do Poeta da Tapada, por palavras, incluída na 2ª edição das suas obras, em 1614, feita a instâncias, ao que parece, de D. Gonçalo Coutinho. A partir do séc. XIX, a situação iconográfica portuguesa melhora. Mas também é sempre vantajoso o complemento de um retrato por palavras que supre algumas lacunas do retrato pintado. De Almeida Garrett existem vários retratos pintados, e gravuras, mas é interessante dar a palavra a Gomes de Amorim, seu devotado biógrafo, que o conheceu e com ele conviveu, pessoalmente. Diz o biógrafo sobre Garrett:
"Completara a esse tempo quarenta e sete anos. Estava no vigor da idade; se tivesse tido sempre boa saúde, poderia dizer-se que era moço ainda. (...) Descobria-se o valetudinário, disfarçado em homem robusto. (...) Era de estatura regular ou antes mais alto do que baixo; tinha agradável presença, ar distinto e composto; a fronte alta e saliente; o nariz e a boca, apesar de grandes, não desarmonizavam as feições do rosto, que era comprido. Os olhos, entre garços e verde-mar, grandes, cristalinos, límpidos, e de um brilho ao mesmo tempo esplêndido e sereno! Estes e os lábios delgados, onde parecia, quando conversava, pairar de contínuo o sorriso de fina e delicada ironia, davam-lhe a pronunciada expressão de soberania, que a inveja e a ignorância traduziam por orgulho. Tinha cor pálida morena; usava suiça muito curta, e pequenina pera ou mosca; a cor preta da barba e a meia palidez do rosto realçavam-lhe certo ar de melancolia simpática. (...) Usava cabeleira postiça desde muito moço, em consequência de ter ficado com a cabeça defeituosa, pela queda que dera de um cavalo; mas não era calvo, como muita gente supunha." (Memórias, I, 10/11).

12 comentários:

  1. Aqui há anos tive de ler Gomes de Amorim, por razões de trabalho. E gostei imenso.
    Se todos os nossos escritores tivessem um biógrafo destes...

    ResponderEliminar
  2. Para MR:
    Gomes de Amorim, na minha opinião,imolou parte da sua vida no altar de Garrett,pelas mais nobres razões que um ser humano pode ter - fé, noutro ser humano.
    Mudando, para um aspecto mais minimalista: o problema da boca ou lábios de Garrett. Não há total coincidência entre este retrato que creio corresponder ao periodo que G. de A. refere,:" lábios delgados". No retrato pintado, o lábio inferior não é delgado... Por outro lado não tenho elementos que permitam arbitrar o diferendo...Há um outro testemunho, mas que passa apenas perto,do poeta e pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre,brasileiro,que diz de Garrett:" Era um homem de estatura mediana, de aparência grave e simpático, e de uma fisionomia expressiva. A parte superior da cabeça era sublime, mas a inferior humanamente sensual, mormente a boca", o que, de algum modo corrobora o retrato que escolhi.
    Ainda não lho tinha dito, mas as suas visitas e comentários têm tido a mesma força de incentivo,como aquando das EP's.
    Afectuosamente,
    A. S.

    ResponderEliminar
  3. Do anedotário garrettiano, com foros de autenticidade:
    tinha várias cabeleiras semelhantes, diferindo apenas no tamanho. E na roda de amigos dizia:-Vou cortar o cabelo. E voltava depois com ele mais curto.
    Cuidadoso com a aparência, vaidoso, usava chumaços, por exemplo nas pernas, que modelava com meias como era uso dos dandis (ou dandies?)e motivo de apreço pelas damas.
    Teria um ombro mais baixo, o que tentava corrigir passando várias vezes sob 2 espadas presas a altura diversa.
    Diz-se que um criado novo, pouco experiente, que o ajudava a despir, estava espantado ao ver tirar as barrigas das pernas, os chumaços dos ombros, as anquinhas, a cinta, a cabeleira...
    Garrett, vendo o espanto, disse-lhe: Agora ajuda aqui ! e fez menção de desatarrachar a cabeça.
    O moço fugiu espavorido.

    ResponderEliminar
  4. Agradeço,manu, o seu comentário que veio enriquecer o retrato sobre Garrett.

    ResponderEliminar
  5. De O COMÉRCIO DO PORTO de 13 de Dezembro de 1854:
    "No domingo passado falleceu o snr. visconde d´Almeida Garrett. O «Jornal do Comércio» publicando esta infausta notícia diz:
    - As letras portuguasas estão de luto, porque perderam um cultor que tanto as estremecia, a poesia nacional chora a perda do cantor de Camões, e a pátria um dos seus filhos, que maior glória lhe conquistou.Era um espírito gentil, era um coração de poeta, era um cidadão prestante; dêmos pois, todos os que presamos as glorias desta terra, uma lágrima saudosa ao restaurador da poesia nacional, ao author de Fr. Luiz de Sousa.
    Deus tenha a sua alma." (sic)


    "Matámos o frade mas inventámos o barão".

    "Nenhuma literatura é viva se não for eminentemente nacional; nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular."

    "Ai! não te amo não; e só te quero
    de um querer bruto e fero
    que o sangue me devora,
    não chega ao coração."

    João Leite da Silva, depois
    João Baptista da Silva Leitão
    de Almeida Garrett

    Nasceu a 4.2.1799, no Porto.Morreu a 9.12.1854

    ResponderEliminar
  6. Aceitando, com humildade as inflexões ou desvios do retrato provocados pelos dois
    estimados comentadores, especialmente o Luís,
    queria também relembrar, citando de cor,do nosso Garret:
    "Foge cão
    que te fazem barão!
    Para onde
    se me fazem visconde?"

    ResponderEliminar
  7. APS,
    Obrigada. Venho aqui com grande satisfação. :)
    Não sabia que esta quadra era do Garrett.

    ResponderEliminar
  8. Sem certezas, julgava que a frase era do Sr. Lobo, da Reboleira, comerciante forte do Porto, citado por Camilo.

    ResponderEliminar
  9. Aliás, conta-se que vinha o Sr.Lobo, a subir da Ribeira, com uma pescada enfiada nos dedos pelas guelras e um passante lhe disse:
    - Ó Sr. Lobo, não tem um pataco que dê a um garoto para lhe levar a pescada?
    -Pataco tenho eu, garotos é que não há. Fizeram deles viscondes.
    (Também Camilo?)

    ResponderEliminar
  10. ..de baraço ao pescoço e mão estendida à palmatória:Foge cão...para onde...? é do Visconde de Almeida Garrett
    Memórias mal arrumadas...
    A vida do Sr Lobo, da rua da Reboleira, é interessante.De ver, acho.
    celoricodigital.blogspot.com/2008/03/.../lobo-da-reboleira

    ResponderEliminar
  11. Obrigado, Luís, pela sua dica. Li sobre o Sr.Lobo, e voltarei a mais. Foi proveitoso e divertido.

    ResponderEliminar
  12. Tenho as maiores duvidas de que Garrett usasse chumaços nas pernas e nos ombros.Tanta invenção de que são vitimas os grandes homens pela arraia miuda!Garrett era politico e um orador de
    de renome com presença assidua no Parlamento.Se andasse habitualmente vestido de forma esquisita arriscava-se a ser ridicularizado no parlamento e na imprensa.

    ResponderEliminar