É talvez o conto português que mais vezes reli. E é, para mim, o melhor momento de prosa de Jorge de Sena. Tem por título "Super Flumina Babylonis" e foi escrito em Araraquara (Brasil), a 27 de Março de 1964. É um documento brilhante sobre criação poética e, também, um "exercício de admiração" - para usar palavras de E. M. Cioran - de Jorge de Sena ao nosso Luís de Camões. Está integrado no livro de contos "Antigas e Novas Andanças do Demónio". São apenas 12 páginas de leitura, mas de grande tensão dramática e limpidez de escrita. Vou trancrever apenas o final, mas para quem nunca leu este conto de Jorge de Sena, aconselho vivamente a sua leitura integral. Até porque é um dos grandes momentos da literatura portuguesa. Para os que já leram a narrativa, venho só relembrá-la.
"...Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei...
E ficou escrevendo pela noite adiante."
«Sôbolos rios que vão
ResponderEliminarpor Babilónia, me achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei. [...]» (Camões)
Ainda aqui há dias alguém citou este poema, aqui ou no Prosimetron.
Sou uma grande fã de Sena.
Tudo o que li de Jorge de Sena foi sempre «na diagonal», nunca me «agarrou». Defeito meu, com toda a certeza. Não o associava a esta magnífica prosa. Vou ver se encontro este conto.
ResponderEliminarUma pergunta infantil: pode-se ser um grande poeta depois de se ter sido abandonado pela poesia?
Uma heresia: «O poço com as formas flutuando» soa-me um bocadinho pretensioso. Certamente, os meus ouvidos que não prestam... :-)
errata: certamente, os meus ouvidos não prestam...
ResponderEliminarFIDELIDADE
ResponderEliminarDiz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.
Jorge de Sena
Adoro este poema.
Jorge de Sena foi bom em tudo o que fez: romance, conto, poesia, ensaio (onde se debruçou sobre áreas diversas, como Camões, Pessoa, Maquiavel, literatura inglesa, etc.).
c.a, tem de ler os Sinais de fogo.
Para MR:
ResponderEliminareu acho que falei no Prosimetron e até referi que também era conhecida por "Babel e Sião"...
ou então sonhei.
E como ensaísta, Sena é do melhor que temos, sobretudo pela concisão (ver "Líricas Portuguesas",3ªsérie)crítica dos poetas que aprecia, pela agudeza racional,etc....
Para "c.a.:
ResponderEliminarnão queria ser evasivo nas respostas, mas as suas perguntas são difíceis. Antes de mais, o poema toma como base o Salmo 136 (ou 137) de David, e da Bíblia. É,em certa medida, uma glosa dos seus 30 versos.Em tempo de defeso ou pousio, as traduções e/ou glosas são uma espécie de intermediação na aridez, até chegar uma aberta
mais propícia. Tenho,no entanto, para mim que se pode pintar e romancear até à velhice, em qualidade e frescura. Mas, em poesia, raramente isso acontece. E é o que lhe posso dizer.
Mas leia este conto de Jorge de Sena, porque ajuda a perceber algumas pequenas coisas.
Não conhecia esse poema, MR. É, de facto, extraordinário. Vou procurar os «Sinais de Fogo». Muito grato.
ResponderEliminarAcho que entendi, APS. Não tinha visto a questão por esse ângulo. Fiquei preso nas palavras, no seu significado literal. Julgo que agora percebi o sentido. Vou ler o conto (e o salmo). Gratíssimo.
Vou ler o conto, o salmo e reler o poema de Camões (peço desculpa, as sinapses hoje estão um bocado lentas...)
ResponderEliminarAquilino e o início da CASA GRANDE..
ResponderEliminarSena e SUPER FLUMINA...
Cardoso Pires , início de ALEXANDRA ALFA
Há quanto tempo !...
Meu caro Luís:
ResponderEliminareu acrescentaria também o final de "Directa" de Nuno de Bragança, e "Os meus amigos de certo nâo sabem o que é caçar coelhos na neve?...", do nosso estimado Camilo, logo ao início de " Cenas Contemporâneas".
APS,
ResponderEliminarDesculpe, já não me lembrava quem tinha sido... :)
Gosto muito do Cardoso Pires, mas não do Alexandra Alpha, mas vou ver como se inicia, já não me recordo.
Idem,MR.
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