sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Da leitura (8)


Se os livros têm códigos morais, eu terei talvez praticado uma boa acção, porque salvei um livro da guilhotina, ou que teria sido, poucos dias depois, vendido ao quilo para ser desfeito e se transformar em pasta de papel, voltando às origens. Mas fi-lo também em meu grande proveito (de leitura), não havendo, porém, qualquer oportunismo prévio ou interesse antecipado. Comprei-o porque gosto de Bestiários, sobretudo. E o livro, com a capa não muito limpa, estava na última prateleira do Alfarrabista, rente ao chão, naquilo que eu chamaria o corredor da morte: se ninguém lhe pegasse por 1 euro, dentro de 2 ou três dias seria vendido para o papel velho. Em boa hora o libertei e veio a ser minha última leitura de 2015 e primeira de 2016, muito agradavelmente. Já aqui (Arpose) falei dele, ao traduzir e transcrever um passo do texto de Georges Duhamel (1884-1966), que apelidei de litania (ou ladaínha). Agora, é uma espécie de fábula panteísta, que o escritor francês narra, tendo, como ponto de partida, Montaigne (1533-1592) e a sua descendência. Aqui vai:


"Montaigne não teve senão filhas e nunca se consolou do facto. Parece mesmo que, aqui e ali, se interrogou sobre as razões do que ele pensava ser uma desgraça.
O jardim, que eu consulto sobre o caso do nosso autor, propõe-me uma resposta e eu vou transcrevê-la fielmente: «O Vosso Montaigne - diz-me - viveu muito feliz, numa abundância constante de bens. Veja bem, aqui pelo jardim, as abóboras sofrem, ao longo do Verão dramático, por toda a estação seca. Elas não produzem senão flores masculinas. Mas, logo que cai uma leve chuvinha, as abóboras lá se aventuram a gerar uma flor fêmea. Era a água do céu que lhes faltava. É a garantia da prosperidade, da esperança, do futuro. Quando somos generosos para com as fêmeas, é porque estamos plenos e temos confiança.»
Relato assim, sem comentários, a reflexão do jardim."

Vêm estas palavras na página 120 de Le Bestiaire et l'Herbier, de Georges Duhamel, sob o número LXXIII e com o título Explication Rustique.


para H. N., se mais não fora, porque gosta de Montaigne...

4 comentários:

  1. Eu também gosto de Montaigne e ando a abalançar-me para comprar uma biografia que saiu sobre ele. Só que tenho andado a ler livros do monte e da prateleira das 'novidades' (cá em casa, porque algumas são velhas). Só depois de desbastados é farei mais compras.

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    1. Pois, eu também precisava de "desbastar as minhas torres", que bem altas estão... O Duhamel é que já foi todo lido.
      Boa tarde!

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  2. Acho uma pena que se destruam livros...
    E continuo a invejar as oportunidades aí por essas bandas: 1 euro! Quem me dera poder ir aí de vez em quando!!

    Desejo-lhe um bom fim-de-semana:)

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    1. Estas novas Editoras não suportam fundos, a Leya, por exemplo, quando comprou a Caminho, foi um ver se te avias - parecia a Revolução Francesa: guilhotinou Saramago, Mª Velho da Costa e muitos outros...
      Votos, também, de um bom fim-de-semana!

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