segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A par e passo 110


No espírito, a memória, os hábitos, os automatismos de todo o género, representam esta vida profunda e estacionária; mas a variedade infinita de circunstâncias exteriores encontra nele recursos de ordem superior. Em particular, o espírito criou a ordem e criou a desordem, porque o seu objectivo é provocar a mudança. Através dela, ele desenvolve um domínio cada vez mais vasto, a lei fundamental (ou pelo menos aquilo que eu creio ser a lei fundamental), da sensibilidade, que é introduzir no sistema vivo um elemento de surpresa, de instabilidade sempre próximo.
A nossa sensibilidade tem esse efeito de fazer romper, em nós, a cada instante essa espécie de sono que se cola à monotonia profunda das funções da vida. Temos de ser sacudidos, avisados, despertados a cada instante para algumas desigualidades, para alguns acontecimentos do meio, algumas modificações da nossa situação fisiológica; e nós temos orgãos, possuímos todo um sistema especializado que nos atrai inopinadamente e com muita frequência para o novo, que nos pressiona no sentido de encontrar a adaptação que convém à circunstância, à atitude, ao acto, à deslocação ou deformação, que anularão ou acentuarão os efeitos da novidade. Este sistema é o dos nossos sentidos.
O espírito empresta assim à sensibilidade que lhe fornece essas chispas iniciais, o carácter de instabilidade necessária que põe em movimento o seu poder de transformação.

Paul Valéry, in Variété III (pgs. 211/2).

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