domingo, 19 de outubro de 2014

Notas de Leitura VIII: "Un été avec Montaigne" - Antoine Compagnon




“As pessoas estariam estendidas na praia ou então saboreando um aperitivo, preparando-se para almoçar e ouviriam falar de Montaigne [1533-1592] na rádio”. Esta a proposta de Phillipe Val que Antoine Compagnon aceitou: quarenta palestras radiofónicas, transmitidas semanalmente na estação France Inter, no Verão de 2012, que estão na origem de Un été avec Montaigne, um livro de 170 páginas, com um grafismo de capa provocatoriamente estival e que, segundo refere o Nouvel Observateur, em Abril de 2014, já vendera 150 000 exemplares.

Questionado sobre o êxito, porventura, inesperado do livro, Antoine Compagnon sublinhou, nestes termos, a hipótese de uma afinidade entre a sensibilidade histórica contemporânea e a da segunda metade do século XVI: “Tal como nós Montaigne está preso a uma contradição, ele já não acredita na infalibilidade das tradições, mas duvida da possibilidade de melhorar a condição humana. Se a modernidade se define pela crença no progresso, Montaigne o pré-moderno e nós os pós-modernos temos em comum o facto de não partilharmos dessa crença”.

A resposta de Compagnon traduz, afinal, o conhecimento de quem tendo dialogado com o pensamento de Montaigne nele reconhece essoutra dimensão do ócio, o momento em que Michel Eyquem se apropriou da sua liberdade e nos tornou testemunhas disso, o momento em que ao “recitar” o seu próprio retrato nos dá a ver os contornos da condição humana, promovendo a remédio para a angústia e para a preguiça a tarefa de conhecer-se.

Grosso de corpo, embora fino de espírito, indolente mas ávido de acção e de liberdade, arguto, embora um tanto permeável à sedução do inverosímil. Todavia, no todo, um carácter bem temperado do sentido da medida e do sol da amizade: um homem que sofreu estoicamente as dores dos seus cálculos renais, que desprezava a mentira e os tiranos, que não suportava a ideia da tortura, mas que soube integrar, com notável talento retórico, a inevitabilidade da morte nas disposições imprescritíveis da natureza.


Este o perfil do Senhor de Montaigne, filósofo acidental, que o livro de Antoine Compagnon vai deduzindo da leitura dos Essais e, sobretudo, resgatando ao oceano das interpretações eruditas que lhe foram descarnando o pensamento: “Uma imagem diz da sua relação com o mundo: a da equitação, do cavalo sobre o qual o cavaleiro mantém o seu equilíbrio, o seu assento precário. Assento esta a palavra dita. O mundo move-se, eu movo-me: sou eu que tenho de encontrar o meu assento no mundo”.

Dir-se-ia, então, que o pensamento de Montaigne se estrutura não em torno da ideia do que somos mas em torno de ideia do que vamos sendo no assento precário da vida, uma espécie de sublime aditamento àquilo em que nos vamos tornando, já que a nossa visão do mundo se vai alterando, se vai aditando, em função do tempo, do lugar e da acuidade do olhar, que é simultaneamente subtileza e detalhe, largura e perspectiva, pois a imagem do homem, a imagem do ser, enquanto “ponto-fixo” é apenas um arquétipo de que sucessivas e esforçadas investidas se aproximam mas não alcançam.


Por isso, os Essais de Montaigne fundamentam um outro olhar sobre a realidade ou, se quisermos, sobre a dependência do homem de carne e osso da sua própria circunstância, que se traduz ora pelo absurdo, ora pelo derrisório, ora pela enorme fragilidade das suas tranquilas e inquestionadas certezas.

Das três respostas que os índios do Brasil, apresentados em Rouen, em 1562, à curiosidade do rei Carlos IX, então com doze anos de idade, deram, perante a Corte, quando questionados sobre o que de mais admirável teriam visto no Velho Mundo do século XVI, diz-nos Montaigne ter retido apenas duas, lamentando ter-se esquecido da terceira.

A primeira das respostas daqueles ilustres “selvagens” sublinhava a estranheza de tantos grandes homens, barbados e armados, que rodeavam o rei menino, se sujeitarem a obedecer a uma criança em vez de escolherem, de entre eles, um para os comandar.

A segunda das observações relatadas por Montaigne relacionava-se com o facto, para eles escandaloso, de uns homens viverem cheios de fartura e rodeados de conforto, enquanto outros, seus semelhantes, mendigarem à sua porta cheios de fome e de pobreza e de, apesar disso, esses injustiçados, não lhes apertarem o pescoço nem lhes incendiarem as casas.

Quanto à terceira das respostas daquelas perspicazes criaturas, a tal que Montaigne lamenta ter esquecido, Antoine Compagnon que, por assim dizer, também ensaia na margem dos Essais, coloca a hipótese dessa suposta resposta se relacionar com um aspecto sobre o qual Montaigne nunca arriscou pronunciar-se: a transubstanciação, ou seja, sobre a mudança da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, no momento da consagração e a sua presença real na eucaristia; diferendo maior entre católicos e protestantes, pretexto e motivo das guerras de religião, no meio das quais o tempo e a circunstância o fizeram viver.

Deste modo, através de uma estratégia que as Lettres Persanes, de Montesquieu, tornarão familiar, mais de um século depois, Michel de Montaigne sublinha o valor da liberdade, perante o absurdo da servidão voluntária, ancorada na irracionalidade do direito divino, o escândalo da pobreza e da desigualdade entre os homens e, considerando a hipótese de Antoine Compagnon sobre a resposta que Montaigne diz ter esquecido – embora subtil e perspicazmente tenha considerado que “somos cristãos do mesmo modo que somos do Périgord ou alemães” e que “apenas a fé incendeia vivamente as certezas dos grandes mistérios da nossa religião” – a crítica ao carácter fratricida dos fundamentalismos da fé.

Eis-nos, portanto, perante as linhas-mestras do pensamento de Montaigne, perante as raízes do seu cepticismo, que a razão acrescenta e o talento desdobra em múltiplas perspectivas, pois o pensamento de Michel Eyquem não aspira a constituir-se como uma visão unitária do mundo e dos homens mas, pelo contrário, a sublinhar na diversidade dos detalhes o seu carácter indeterminável, contraditório e fragmentário, que só através da viagem e do olhar (desde o assento instável da sua sela, num exercício continuado do prazer de cavalgar), da leitura e da meditação, se compreendem e de facto se humanizam.


Avulta, pois, neste retrato renovado e, porventura, renovador de Montaigne, que Antoine Compagnon nos oferece, a sua admirável fábrica de pensar, o seu processo sui generis que, partindo da glosa crítica do pensamento alheio o incorpora, se robustece no detalhe e vai construindo, como quem viaja, em torno de si, de dentro para fora, uma análise metódica mas assistemática da sua própria natureza; um pensamento quase nómada que se toma a si próprio como matriz e como roteiro daquilo que de indeciso e de contraditório existe na natureza humana. Um pensamento livre, um rasgo de serenidade, como se, despido o aparato da teologia, a verdade sorrisse e alcançasse a simplicidade de um saber profundo: “É uma absoluta perfeição, e como que divina, o saber fruir lealmente do seu ser […]. As mais belas vidas são em meu entender, aquelas que se conformam com ordem ao modelo comum e humano; mas sem milagre, mas sem extravagância”.

 Assim, o fio de cepticismo que atravessa os Essais é, na perspectiva de Antoine Compagnon, a chave que faz de Michel Eyquem um quase contemporâneo: tal como nós também Montaigne viveu um tempo de interregno das certezas e de remissão da verdade e a sua lição estará, porventura, no modo como soube transformar em argumento o ornamento da dúvida, como soube trocar as voltas ao domicílio da angústia e reencontrar os limites do humano, arredando o talvez grande medo da morte com uma singular afirmação dos fundamentos da vida: “Quero […] que a morte me encontre a plantar as minhas couves”. Um epicurista quase tranquilo – diríamos – que pedagogicamente nos mostra como o ócio de bem fruir a dádiva da vida se pode transformar no verdadeiro negócio de viver.               

Post de HN.

 O Arpose congratula-se e acolhe, com cordial júbilo, mais uma reflexão de leitura de H.N. Que muito agradece.

2 comentários:

  1. Gostei muito deste post. Li pouco de Montaigne e há muitos anos. lembro-me que tinha uma atitude prática perante o que deve ser a educação.
    Fiquei com vontade de ler este livro de Compagnon, não fosse a montanha que (quase) todos os dias cresce.

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    1. Folgo muito..:-) Eu li Montaigne, já tarde, por volta dos 40...

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