segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

David, sobre Eugénio (em memória e a pedido...)


Quase todos falarão da sua poesia, que sempre soube aliar com extrema sabedoria o sensorial desalinho ao disciplinado clássico, numa quase impossível simetria; os próximos poderão falar decerto da sua humana e afável generosidade, que nem sequer - que eu saiba - tinha ódios de estimação. Mas eu, hoje, gostaria de destacar o seu lado, talvez menos visível, de crítico competente e profundo, isento também - o que é mais raro num país que não abunda em sentido crítico nem na análise serena dos factos. E, no dia em que passam 87 anos, sobre o seu nascimento, vou lembrá-lo, através das suas palavras que constituem uma das melhores análises críticas (de grande acuidade sensível e certeira) para a compreensão da poesia de Eugénio de Andrade. As palavras são de David Mourão-Ferreira (Vinte Poetas Contemporâneos, Ática, 1960):

"...A poesia de Eugénio de Andrade apresenta-se corajosamente superficial - e de uma superficialidade tão subtil e envolvente, tão reticente embora capciosa, que só ao fim de repetidas leituras cabalmente se impõe. É certo que tais repetidas leituras trazem consigo o risco de revelar a estrutural inanidade de uma poesia como esta, que, em vez de penetrar no espírito do leitor, parece tão-somente deslizar, derramar-se sobre ele. Mas, então, já o espírito se encontra sob os efeitos desse epidérmico sortilégio; e nem reage. Um dos maiores triunfos da poesia de Eugénio de Andrade consiste justamente nessa capacidade de entorpecer, por meios muito simples, mesmo frívolos, aparentemente ingénuos ou desajeitados, o espírito de leitores aliás exigentes em outras circunstâncias. ..."

(Correspondendo ao desafio de A. C.)

2 comentários:

  1. Bolas.
    Ainda por cima, acertou naquilo em que mais me revejo em certos poetas e artistas: a superficialidade, a que Calvino chamou leveza e eu chamo viver.
    Muito bom.

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  2. São palavras de sabedoria...
    O meu primeiro contacto com a poesia de E. de A. não foi famoso...só à terceira ou quarta leitura é que comecei a perceber as várias camadas e o engenho do artífice.

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