quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Das leituras da véspera


"...Não estou a dizer que os escritores deveriam deixar de escrever. Isso seria pretensioso. Pergunto-me se não escreverão demasiado, se a massa de textos impressos, por entre os quais temos dificuldade em abrir caminho, desorientados, não representa por si só uma subversão do sentido. «Uma civilização de palavras é uma civilização doentia.» É uma civilização em que a inflação constante da moeda verbal desvalorizou de tal modo o que antes era um acto de comunicação criadora, que o valor e a inovação autênticos deixam de ser audíveis. Todos os meses tem de ser produzida uma obra-prima e, como tal, a actividade editorial concede à mediocridade um esplendor espúrio e passageiro. Os cientistas dizem-nos que a vaga de publicações especializadas e monografias atinge proporções tais, que em breve será necessário tornar as bibliotecas satélites em órbita, acessíveis por meios electrónicos enquanto giram à volta da Terra. A proliferação da verborreia na investigação humanística, as banalidades disfarçadas de erudição ou de reavaliação crítica ameaçam de obliteração a obra de arte e a exigência imediata da descoberta pessoal, que é a base de toda a verdadeira crítica. Falamos também demais, com demasiada leviandade, e tornamos público o que é privado, transformamos em estereótipos de falsa certeza o aproximativo, pessoal e, por isso, vivo na região de sombra da palavra. Vivemos numa cultura que é cada vez mais um turbilhão de palavreado oco, palavreado que se estende da teologia à política e confere um ruído inaudito aos problemas íntimos de cada um (o processo psicanalítico e a retórica superior da curiosidade indiscreta). Trata-se de um mundo que não terminará numa explosão nem num grito, mas num título de primeira página, num lema publicitário, num romance obsceno tão palavrosamente frondoso como um cedro do Líbano. Em que proporção deste fluxo quotidiano as palavras acedem à palavra? E onde encontraremos o silêncio necessário para que possamos aperceber-nos dessa metamorfose?..."

George Steiner, in Linguagem e Silêncio (pgs. 95/6), Gradiva, 2014.

Aditamento pessoal: segundo o TLS (nº 5785), no ano de 2013, foram publicados, na Inglaterra, 170.267 livros. O que dá uma média de 461 livros/ dia...

5 comentários:

  1. Concordo e muito. E sobretudo cansa a maneira como se usa a polémica e a fama para chamar a atenção.

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  2. Tb concordo, claro. Nunca se publicou tanto porque nunca houve tanta gente alfabetada, alguns destes bem pouco. E nunca houve tantas edições de autor camufladas.
    Mas sempre se publicou muita porcaria. Já Antero, em 1877, escrevia a Oliveira Martins: «Os versos são a praga da literatura portuguesa pelo caráter banal que a versalhada imprime a todos os jornais literários».

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    1. O. M. tinha razão. E os jornais de província ainda são um exemplo disso, hoje. Depois há a habitual e atávica falta de sentido crítico dos portugueses, que não os ajuda a separar o trigo do joio. E ainda o novo-riquismo cultural de querer estar "à la page" com a lista dos "best-sellers", para poder fazer conversa de salão... As razões acabam por ser muitas e, lá fora, creio que não será muito diferente.

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    2. Errata:
      em vez de O. M., deve ler-se - Antero.

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  3. É por isso que eu estou, sobretudo, a reler aquilo de que gostei mais. Já não tenho tempo, nem pachorra para aqueles "tijolos"-"best-sellers", que se vêem muito nos transportes públicos...

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