terça-feira, 21 de maio de 2013

Os desencantos de Herculano


 Ao folhear os livros que incluí em Bibliofilia 81, ontem, dei por mim a ler uma nota final de Alexandre Herculano (1810-1877), de que já não me lembrava, porque a li há muito. São cerca de 8 páginas de um português escrito puríssimo, de tensa varonilidade, de ironia, mas onde transparecem as decepções que o Escritor teve, quer na vida pública, quer por causa da sua obra literária e de historiador. Deixo aqui o início da nota de Herculano, para partilha, bem como um pequeno excerto bem humorado e irónico, posterior. Seguem:

"A Bagatella litteraria que hoje (1848) offerecemos ao publico, escripta ha oito ou nove annos, tinha ficado incompleta e esquecida quando em 1840 circumstancias, que não importa narrar aqui, baldearam o auctor no charco da vida publica.
A Providencia, que provavelmente não o achou assás corrompido para fazer delle um homem d'estado, deu-lhe uma hora de contrição, em que podesse desempégar-se, escorrer o lodo dos vestidos, lavar o rosto, e voltar ao gremio do mundo moral." (...)
"Apesar de não ter sido culpa da vontade, mas do entendimento, o extravio politico do auctor deste livro, a divina justiça condemnou-o a remir o bestial peccado que commettera, pondo-lhe ás costas uma cruz, e mandando-o caminhar por agro e escabroso sarçal. A cruz que o Senhor lhe impoz foi a monomania de escrever a  historia desta terra com lealdade e consciencia. Para isso, entendeu elle que era necessario estudar e meditar muito, e durante mais de tres annos, entregue á realisação desse pensamento, guardou um silêncio litterario raras vezes interrompido. Quando suppos que era tempo de provocar o julgamento dos esforços que fizera, disse ao seu paiz: - «Eis aqui um modesto specimen do methodo que eu creio dever seguir-se ao escrever a tua historia.»
Foi, porém, então, que os seus hombros tiveram de vergar sob o peso da cruz que tomára. Voz em grita, a sciencia infusa começou a bradar - escandalo! - blasphemia! - attentado! - Chiava, grasnava, piava, vociferava. O pobre cruciferario parou, e poz-se a escutar aquella matinada e revolta. Accusavam-no, calumniavam-no sanctamente, chamavam-lhe manicheu, iconoclasta, lutherano, proclamavam-no traidor á patria. Os mais zelosos (e, cumpre confessa-lo, os mais cortezes e honestos) pegaram na penna, e provaram-lhe até a evidencia que a arte historica não consistia no que elle pensava; consistia em cirzir algumas lendas de velhas com as narrativas semsaboronas de meia duzia de in folios, rabiscados por quatro frades milagreiros, tolos ou velhacos. Fizeram-lhe ver claro como a luz do meio-dia, que o primeiro mister do verdadeiro historiador portuguez era o demonstrar por um sem numero de cruas batalhas (as quaes, na hypothese de não passarem de brigas de saloios, se podiam magnificar, melhor que nunca, depois da bella invenção dos telescopios de Herschell), que a expressão do valor nacional se resumia com admiravel exacção na seguinte fórmula de patriotismo:
Portuguez 1 igual a Gallegos 4
Dito.........1 = Castelhanos 3
Dito.........1 = Francezes ou inglezes 2
Dito.........1 = Flamengos 2,91
Dito.........1 = Allemães e mais cainçalha do norte 2,50
Dito.........1 = Mouros 527
Dito.........1 = Turcos, abexins, parsios e rumes 73
Dito.........1 = Chins e lilliputianos 1.293
Dito.........1 = Patagões 1 e 3/4
que isto é que era dizer a verdade, ter amor de patria, e escrever historia; e que o mais era historia (...)."

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