domingo, 20 de abril de 2014

A Páscoa rural, segundo Aquilino


...Nesse ledo clima de outrora, e até ainda durante a guerra, por toda a Quadragésima, as aldeias ouviam reboar as matracas a chamar os fiéis para a Via-Sacra. A um sinal tão áspero como estranho cada um montava o seu corcel fogoso e ala, fantasia. Como é que Deus se deixava matar por meia dúzia de safardanas?! (...)
Nesses dias de treva as janelas das casas, em observância com a pragmática, fechavam as portadas. O comércio aderia. O senhor Pereira pesava o bacalhau em voz baixa, com gestos comedidos, e os caixeiros que tinham gravata preta punham-na. E como não, se à noite, no afogo das cerimónias quaresmais, se encontravam com as meninas e ia morrer um Deus?! Os altares estavam velados com crepes e lençarias pintadas, pois não seria decoroso que a jucunda graça da Senhora dos Remédios, o manto garrido do S. João, a estola sarapintada de estrelas de Santa Catarina continuassem a alegrar os olhos e a perfumar o mundo na hora lacrimosa. (...)
Abril quase no termo, antecipava-se em seu advento o sol estival. As rolas, o cuco e a poupa cantavam e recantavam no coruto dos pinheiros. De quando em quando o marantéu lançava sobre a natureza amodorrada o seu gorgeio vibrante, amarelo como ele, como o sol, como o fogo, como as flores mais plebeias dos prados. Os gaios pinchavam nas casticeiras, que se recobriam de rebentos primaveris, penugem verde-amarela, breve e imponderável como uma musselina, e travavam com aqueles o provável despique:
- Viste lo abade?
- Lá o vi, lá o vi.
- Com'ia vestido?
- Ia com'a mi.
- Comeste-lhos figos?
- Pois comi, comi!

(...) Domingo de Páscoa, manhã alta, perpassava ao cabo da rua braçada rúbida de camélias. Uma, a mais vermelha, ia o juiz da igreja entalá-la na cruz de prata de guizeiras entre a aspa e o braço do justiçado. E, assim guarnecida, o senhor padre dava a beijar às famílias ajoelhadas Cristo e a Primavera:
- Aleluia! Aleluia!
(...)
Aquilino Ribeiro, in Aldeia - Terra, Gente e Bichos (pgs. 65, 67, 71).

4 comentários:

  1. Relembro a Páscoa da minha infância, neste belo texto de Aquilino Ribeiro.
    Aproveito para também deixar aqui os meus votos de uma Boa Páscoa!

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    1. Pena que Aquilino seja pouco lido, hoje, ou mesmo citado...
      Muito obrigado pelos seus votos.

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  2. Ora aqui está um escritor que leio com enorme prazer.
    A maioria das pessoas nem sabe quem ele é.
    Há dias, vi um jornalista na tv a perguntar na rua e numa livraria se sabiam quem era Gabriel García Márquez. Uma criatura até disse que era um personagem da nossa História.

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    1. Aqui também estou inteiramente de acordo consigo.
      As Rebelos, as Judites e os Vergílios é que interessa divulgar, para desmiolar ainda mais
      as gerações, ou para as entreter com as banalidades saloias. Com papas e bolos...

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