terça-feira, 8 de junho de 2010

Alfarrabistas e Bibliotecas


Por diversas vezes me aconteceu que, ao entrar num dos alfarrabistas que mais frequento, se me deparasse uma biblioteca, quase intacta, que B. T. tinha comprado e acabado de expor à venda. Para lá do sentimento piedoso que, às vezes me assalta, misturado com alguma estranha nostalgia há, também, em mim, a exaltação da descoberta e procura. E, em grande parte dos casos, posso surpreender os gostos, preferências e obsessões do anterior proprietário. Outras vezes verifico que os livros dessa ou de outras bibliotecas foram apenas "ferramentas" de trabalho de algum estudioso, ou mera ostentação de luxo por algumas excelentes encadernações feitas em livros de medíocre conteúdo, ou mínimo valor.
De uma das vezes que dei com uma biblioteca, quase intacta, nesse tal alfarrabista, verifiquei, pelo ex-libris, que tinha pertencido a um acervo que me fora familiar nos anos 80, e que eu tinha consultado com vagar e à vontade. A família, por motivos diversos e talvez partilhas, alienara toda essa biblioteca que, não sendo de livros raros, era pelo menos ampla e bem escolhida. Desses volumes comprei apenas um livro ("A Travessia da Antárctica" de Sir Vivian Fuchs e Sir Edmund Hillary) como recordação afectuosa do falecido proprietário que eu estimava e me estimava. É a vida...
Muito recentemente, deparou-se-me uma biblioteca com um núcleo duro composto essencialmente por literatura espanhola, nesse alfarrabista de que falei acima. O dono, já falecido - vim a saber - tinha sido professor universitário. Acarinhara os livros, mimara-os, encapara-os com papel cristal; embora manuseados e, por vezes, com pequenas e leves anotações a lápis, os volumes encontravam-se em magnificas condições de conservação. No entanto, para lá do importante acervo de autores espanhóis, havia também um pequeno núcleo, muito seleccionado, de escritores franceses. Um dos autores mais representado era Louise Labé (1522?-1566), poetisa da Renascença, nascida em Lyon, e também conhecida por "la Belle Cordière"(por causa da profissão do pai), ou ainda por "la Belle Lyonnaise", pela sua origem. Em qualquer dos casos, o adjectivo (Belle) mantivera-se, o que quer dizer que teria sido uma mulher formosa. Há muitos anos atrás (1963?, 1964?), Mário Castrim tinha-me falado desta mulher culta, femininista "avant la lettre" que tivera grande projecção e nome na Renascença Francesa. Por isso, e porque nunca tinha lido nada de Louise Labé, acabei por adquirir três volumes sobre ela e a sua obra. Não me entusiamou muito - devo confessar - a leitura um pouco dispersa que fiz na altura. Mas ontem, num pequeno intervalo de tarefas e para gastar o tempo, comecei a folhear, displicentemente, um dos volumes de poesia da escritora. De repente deparei com uma quintilha que me surpreendeu e agradou. Vou traduzir, então, esses cinco versos de Louise Labé:

Eu vivo, morro, ardo e me aborreço...
Vida p'ra mim, suave ou muito dura...
Tanto me rio como logo choro...
Meu bem se vai embora e nunca dura...
Ora me apago, ora reverdeço...

P. S.: para c. a., que também gosta de livros.

3 comentários:

  1. As bibliotecas são destinos mágicos, os alfarrabistas, as estações onde compramos os bilhetes. Depois existem lugares tranquilos que são, simultâneamente, varandas para o mundo, como este seu «Arpose», onde os viajantes, como eu, encontram acolhimento, conforto, conselho. Sítios raros, neste mundo de loucos, no qual é difícil escapar à sina da heroína destes versos da Louise Labé. Muito grato por tudo, APS. Uma boa noite para si e até amanhã!

    ResponderEliminar
  2. Gostei da frase "As bibliotecas são destinos mágicos, os alfarrabistas, as estações onde compramos os bilhetes" do comentário anterior. Não conheço Louise Labé.

    ResponderEliminar