Desta vez, socorro-me de um livro, para abordar uma delícia comestível. E, mais uma vez, recorro a Julio Camba (1882-1962), esse galego de escrita elegante, de verbo bem disposto, grande conhecedor da gastronomia deste mundo. É um capítulo inteiramente dedicado às trufas, que traduzi do castelhano, e que pertence ao livro de que tenho vindo a falar: "La Casa de Lúculo...". A única actualização que se poderia fazer ao texto de Julio Camba é que, hoje em dia, para além de cães de faro e apetite fidalgos, também se usam suínos treinados, na procura das terrenas e divinais trufas. Orwell que nesta data (25 de Junho) nasceu, em 1903, exclamaria, com propriedade e direitos de autor, é o "triunfo dos porcos"!; mas vamos ao texto de Camba:
Aquele que nunca comeu uma trufa assada em cinzas de carvão de azinheira, ou cozida ao vapor de um vinho respeitável, não sabe o que são trufas. A trufa é o produto mais misterioso e mais prodigioso da terra. Não se pode cultivar nem colher, e há que caçá-la, saindo para o campo, com um cão que cheire o seu rasto. Na realidade, a trufa tem sempre algo de caça e não é só pela maneira de como se apanha, mas também pelo sabor que a caracteriza. Eu estabeleço entre ela e os outros vegetais a mesma relação que há entre um pato selvagem e um pato de galinheiro. Esse aroma poderoso da trufa, esse perfume bravio que as caracteriza, essa sua personalidade única que só se obtém em plena liberdade, longe do homem e da civilização.
Eu imagino que o cão fareja a trufa que jaz debaixo da terra, de igual modo que nós cheiramos a trufa assada, e calculo o que deve sofrer o pobre quando lha tiram da boca. Os cogumelos oferecem-nos o perfume do campo e do bosque, isto é, o perfume da superfície da terra. As trufas, ao contrário, oferecem-nos a essência mais íntima e entranhada. Pegar numa boa trufa, uma dessas trufas de cor de ébano, gordas como um punho, que só, ai!...se produzem em França - as nossas, coitadinhas, criadas na terra, e até os «tartuffi bianchi» italianos, são uma espécie de batatas comparadas com as trufas de Perigord -, equivale a um acto religioso, porque nos dá um novo sentido do mundo e da vida.
Enquanto que dessas trufas de conserva que se utilizam para fazer algumas voláteis e pequenas incrustações de carácter decorativo, mais vale nem falar. Em Lyon costumam lardear as «poulardes" com grandes bocados de trufas frescas, mas em tal quantidade que as «poulardes» assim preparadas se chamam «poulardes demi-deuil» ou de meio luto, e aquilo, sim, é outra coisa. Apesar da sua fúnebre denominação, a «poularde-deuil», impregnada com o gosto da trufa, não tarda em reconciliar com a vida o homem mais desesperado.
É uma ideia muito antiga a de que a trufa desenvolve a nossa capacidade amatória, e isso não me surpreende muito. Não é que eu acredite muito nas vitaminas. Nem em nada de parecido, mas creio sim que nenhuma emoção artística se basta em si mesma, e que o homem precisa de descarregar sempre, pela via sentimental, aquilo que recebe. Daí que não se conceba uma bela paisagem sem um terno idílio; daqui resulta que os recém-casados vão passar a lua-de-mel à Suiça, e daqui, finalmente, a tradição da trufa, manjar que nos enche de desejos.
Não sei o que são trufas, porque pertenço ao grupo daqueles que nunca comeram «uma trufa assada em cinzas de carvão de azinheira, ou cozida ao vapor de um vinho respeitável»... E mesmo trufas, sem serem disfarçadas, não sei se algum dia comi.
ResponderEliminarEu também, agora, não tenho a certeza sobre se as poucas que comi obedeceriam a estas regras de exigência...
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