terça-feira, 26 de maio de 2015

Uma reflexão de Francisco Manuel de Melo


"Eis aí o engano dos mortais; porque a velhice é uma piedosa estalagem que Deus pôs entre a morte e a gentileza, brio, esforço e saúde. Se entre o inverno e verão não houvesse de uma banda o outono e da outra a primavera, quem pudera viver, passando desordenada e sùbitamente das calmas aos frios e dos frios às calmas? Se entre o dia e a noite não houvera um e outro crepúsculo, que vista se averiguara com as luzes ou com as sombras, passando intempestivamente da claridade às trévoas e das trévoas à claridade? Da mesma maneira, e ainda muito mais necessária, interpôs a Providência a velhice entre a vida e a morte para que ali se domasse a fúria dos afectos, se deminuisse a sobejidão do amor da vida, e o homem fosse perdendo o receo à morte, pela conversação dos achaques e companhia dos acidentes próprios da velhice. Senão, dizei-me: quem poderia apartar-se liberalmente das felicidades humanas em meio delas, se, ainda depois de gozadas e depois de perdidas, custa tanta dor seu apartamento? ..."

Francisco Manuel de Melo (1608-1666), in Relógios Falantes.

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