Aqui há uns bons anos, Giovanni Papini (1881-1956) era um escritor italiano, de Florença, muito lido. De um cepticismo inicial tinha passado a um catolicismo relativamente ortodoxo. Mesmo assim, foi quase sempre irreverente em tudo aquilo que escreveu. Uma das suas obras mais conhecidas é "Gog", tendo, mais tarde, escrito a sequência : " O novo livro de Gog". Por uma questão de melhor enquadramento, vou transcrever alguns fragmentos sequenciados de forma a situar a parte final da citação. E desafio, a quem me ler, a tentar identificar as "obras-primas" literárias de que Giovanni Papini faz uma descrição sumária e satírica - daqui a heresia... Aqui vai:
"Envergonha-me dizer onde conheci Gog: foi num manicómio particular. (...) e voltou para me entregar um embrulho de seda verde. - Leia - disse-me -, são folhas que salvei do último naufrágio." Papini refere depois que as folhas manuscritas eram uma espécie de diário em que Gog lançava apontamentos sobre o que ia vendo, lendo e vivendo. No primeiro capítulo ( intitulado "As obras primas literárias") escreve a dado ponto:
"Tive coragem para ler aqueles livros todos, menos três ou quatro, que, logo às primeiras páginas não pude suportar. Hostes de homens, chamados heróis, que se estripavam durante dez anos a fio, sob as muralhas de uma pequena cidade, por causa de uma velha seduzida; a viagem de um vivo à fossa dos mortos, com o fim de falar mal dos mortos e dos vivos; um doido héctico e um doido gordo que vão Mundo fora em busca de sovas; um guerreiro que perde o juízo por uma mulher e se diverte a arrancar azinheiros pelas selvas; um pulha cujo pai foi assassinado e que, para o vingar, faz morrer uma rapariga que o ama e outras personagens diversas; um diabo coxo que levanta os telhados de todas as casas para exibir as suas misérias; as aventuras de um homem de estatura média que faz de gigante entre os pigmeus e de anão entre os gigantes sempre de modo inoportuno e ridículo; a odisseia de um idiota que, através de ridículas desventuras sustenta que este Mundo é o melhor dos mundos possíveis; as peripécias de um professor demoníaco servido por um demónio profissional; a aborrecida história de uma adúltera provinciana que se enfastia e, por fim, se envenena; as surtidas loquazes e incompreensíveis de um profeta acompanhado de uma águia e de uma serpente; um rapaz pobre e febril que assassina uma velha e que depois - imbecil - nem sequer sabe aproveitar um alibi e acaba por cair nas mãos da polícia. ..."
Li os dois livros de Papini há muitos anos. Não me lembro já da mensagem, ficou apenas a ideia de que gostei. Ele tem uma coisa a favor: é florentino. Gostei da imagem que utilizou.
ResponderEliminarDeixo os meus palpites:
ResponderEliminar«Hostes de homens, chamados heróis, que se estripavam durante dez anos a fio, sob as muralhas de uma pequena cidade, por causa de uma velha seduzida», só pode ser a Ilíada, de Homero.
«a viagem de um vivo à fossa dos mortos, com o fim de falar mal dos mortos e dos vivos» é a Divina Comédia, de Dante.
«um guerreiro que perde o juízo por uma mulher e se diverte a arrancar azinheiros pelas selvas» - será o Lancelot do Lago?
«um pulha cujo pai foi assassinado e que, para o vingar, faz morrer uma rapariga que o ama e outras personagens diversas;» - Hamlet, Shakespeare.
«as aventuras de um homem de estatura média que faz de gigante entre os pigmeus e de anão entre os gigantes sempre de modo inoportuno e ridículo;» - As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift.
«as peripécias de um professor demoníaco servido por um demónio profissional» - Frankenstein, de Mary Shelley?
«um rapaz pobre e febril que assassina uma velha e que depois - imbecil - nem sequer sabe aproveitar um alibi e acaba por cair nas mãos da polícia» - O Estrangeiro, Camus
Ainda me faltam uns quantos...
Do Giovanni Papini tenho ideia de um livro, na biblioteca da minha infância. Fixei o nome por ser musical. Te-lo-ei folheado, mas era criança. Nunca o li. Vou ver se o procuro.
Reli o último, que identifiquei como sendo O Estrangeiro, mas agora estou com dúvidas porque já não me lembro exactamente do crime cometido pelo personagem principal.
ResponderEliminar«a aborrecida história de uma adúltera provinciana que se enfastia e, por fim, se envenena», fui tentado a identificá-la como sendo a Anna Karenina, mas tenho ideia que o método de suicídio não foi o veneno...
Para agradecer a recordação deste autor:
ResponderEliminar"As Máscaras
Comprei, ontem, três máscaras japonesas antigas, autênticas, maravilhosas. Coloquei-as depois, na parede do meu quarto e não me canso de as olhar. O homem é mais artista que a Natureza. Os nossos rostos verdadeiros parecem mortos e sem carácter diante destas criações obtidas com um pouco de madeira e laca. (...)"
Giovanni Papini, Gog, Lisboa: Edição Livros do Brasil,sd. p. 43
"Satã será liberto da sua prisão e sairá para seduzir as Nações, Gog e Magog...
(Apocalipse, XX,7)
Obrigada por me levar a procurar na estante este livro. :)
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ResponderEliminarApaguei os dois anteriores porque estavam uma pessegada.
ResponderEliminarParabéns, c.a,
Aqui vão mais uns palpites:
«um doido héctico e um doido gordo que vão Mundo fora em busca de sovas» deve ser D. Quixote e Sancho Pança;
«a odisseia de um idiota que, através de ridículas desventuras sustenta que este Mundo é o melhor dos mundos possíveis» deve ser Cândido, de Voltaire;
«as peripécias de um professor demoníaco servido por um demónio profissional» = Fausto;
«a aborrecida história de uma adúltera provinciana que se enfastia e, por fim, se envenena» não será a Bovary? Ana Karerina mete-se debaixo de um comboio;
«um rapaz pobre e febril que assassina uma velha e que depois - imbecil - nem sequer sabe aproveitar um álibi e acaba por cair nas mãos da polícia» será o Crime e castigo?
Quanto às «surtidas loquazes e incompreensíveis de um profeta acompanhado de uma águia e de uma serpente» já li, mas...
Exactamente! é a Bovary e não a Ana Karenina (bem me parecia que na história da Karenina havia um comboio...) E também concordo que deve ser o «Crime e Castigo» e não «o Estrangeiro» (li-o há tantos anos que já não recordo bem...)
ResponderEliminarOs outros também me parecem certos (como é que não me lembrei do D. Quixote?!... Tenho-o numa edição com tradução de Aquilino Ribeiro)
Com as sugestões, gentilmente, fornecidas e algum trabalho jugo poder dar a lista completa
ResponderEliminar(e correcta?)das pistas,obras e autores:
1."Hostes de homens..."- "Ilíada" de Homero
2."A viagem de um vivo..."- "Divina Comédia" de Dante
3."Um doido héctico..." - "D. Quixote" de Cervantes
4."Um guerreiro que..." - "Orlando,o furioso" de Ariosto
5. "Um pulha cujo..." - "Hamlet" de W. Shakespeare
6."Um diabo coxo..." - "O diabo coxo" de Luis Velez de Guevara (1579-1644): talvez o + difícil
7."As aventuras de um..." - "Gulliver" de Swift
8."A odisseia de um idiota..." - "Candide" de Voltaire : este eu não sabia.
9."As peripécias de um professor..." - "Fausto" de Goethe
10."A aborrecida história..." - "Madame Bovary" de Flaubert
11."As surtidas loquazes..." - "Assim falava Zaratustra" de F. Nietzsche
12."Um rapaz pobre e febril..." - "Crime e castigo" de Dostoievski.
Obrigado pelo esforço.
Assim falava Zaratustra, pois é, mas estava muito longe...
ResponderEliminarUm diabo coxo nunca li.