segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Alexandre Herculano : uma carta




Para lá do seu interesse e gosto pelas práticas agrícolas - que o levou a produzir um dos melhores azeites de Portugal, na sua quinta de Val-de-Lobos (Ribatejo) - e do seu labor de escritor e historiador, Alexandre Herculano (1810-1877) foi também bibliotecário. Ainda e no decurso do cerco do Porto, D. Pedro IV (1798-1834) nomeou-o segundo bibliotecário da Biblioteca do Porto. Herculano foi, também, perceptor de D. Pedro V (1837-1861) a quem o ligava um respeito e amizade, fraternos, que sempre foram correspondidos pelo jovem rei. Antes de se retirar para Val-de-Lobos, o historiador trabalhou na Biblioteca da Ajuda ou Biblioteca do Paço que tinha aumentado, grandemente, com as compras de livros efectuadas por D. Pedro V. D. Fernando II (1819-1885), viúvo de D. Maria II (1819-1853), após a morte daquele rei, quis reavaliar o que fazer com o acervo da Biblioteca. Para isso, em vez de ouvir Herculano em primeiro lugar, e como deveria ser, resolveu consultar Inocêncio F. da Silva (1810-1876), autor do "Dicionário Bibliográfico Português". O autor de "O Bobo" soube do facto e ficou sentido e ferido no seu orgulho pessoal e profissional, e escreveu a D. Fernando a carta que iremos transcrever. Nos tempos que correm, vale a pena recordar, como exemplo, esta tomada de atitude de quem não está agarrado ao poder ou mordomias e defende o seu bom nome e a sua honra com imperativos de ética sem perder o respeito pelos outros, não esquecendo, no entanto, o respeito humano que lhe devem. Esta carta de Alexandre Herculano é um belo documento, de claridade de escrita e pensamento. Foi publicada na revista "O Instituto" da Universidade de Coimbra (vol. CXXVII, tomo I, 1965). Aqui vai a transcrição:

" A opinião obriga. Em matérias d'honra é ella que determina a força e o sentido dos factos. Como o jury, as suas decisões tanto valem quando erra, como quando acerta. Posso entender, por exemplo, que o duello é bárbaro, anti-christão, absurdo; mas hei-de acceitar o duello nos casos em que a opinião o reputa forçoso, sob pena de deshonra. Eis o que torna o meu procedimento nesta conjuntura fatalmente necessário.
S. M. não me offendeu com a incumbencia que deu a Innocencio: não me offenderia mesmo quando a minha situação fosse a que geralmente se crê ser. Cada qual serve-se com quem mais lhe agrada ou melhor pode desempenhar o mister que lhe é incumbido. Seria absurdo que o rei não podesse governar a sua casa como qualquer outro cidadão. S. M. tinha-me falado por mais de uma vez neste negócio da organização de uma Bibliotheca real com os elementos que para ella há; tinha-me para isso chamado. Achou provavelmente más as minhas ideas a este respeito, boas as d'Innocêncio. Preferiu-as e preferiu-o. Fez bem. Usou de um direito que não chega a ser de rei, porque é simplesmente de dono de casa.
V. M. vê bem que não é essa a questão. O que eu lamento, e não o lamento por mim é que o facto, pela coincidencia e pela publicidade, tomasse um carácter politico, que, porventura, não era intenção de S. M. dar-lhe mas cujos effeitos, como questão pública, se tornaram completamente irremediáveis.
V. M. conhece o principio de philosophia juridica, de que a cada direito corresponde uma obrigação. Ao direito d'El-Rei corresponde uma obrigação minha. É a de me retirar. Mas, desde que o facto tomou, por aquellas duas circunstâncias da coincidencia e da publicidade, uma significação de ordem política em relação a mim, nasce tambem para mim o direito de manter illesa a propria dignidade.
Peço a V. M. que me deixe salvar este direito e cumprir aquella obrigação. Conceda-me V. M. uma licença illimitada, uma aposentação ou reforma, uma simples demissão; aquilo, em summa, que V. M. achar mais conveniente e razoável. Na última hypóthese, a minha gratidão para com V. M. não diminuirá um só ápice. Que me importa, de feito, um futuro que já não pode ser demasiado longo, se conservar a affeição de V. M. essa affeição nunca desmentida durante vinte e quatro anos, e até mantida mais de uma vez à custa de sérios desgostos? Posso eu nunca esquecer-me de que o que valho e sou, se valho e sou alguma cousa, o devo a V. M. que me creou, na mocidade e quási na obscuridade, uma situação tranquilla em que pude ser útil a mim e não sei se ás letras e ao paiz? Isto que digo aqui já o disse n'um livro que talvez viva mais do que eu; mas apesar disso, hei-de repeti-lo sempre perto ou longe de V. M.
Quando o Senhor D. Pedro V falleceu pedi a V. M. que me deixasse ir para um canto affastado daqui. Em vinte e quatro annos de tanta benevolência e amizade só pedi isto a V. M. Parece-me que não abusei muito. Conceda-mo V. M. agora. Seria um espinho que me pungiria de contínuo se, devendo inevitàvelmente abandonar a minha actual posição, porque o pundonor o exige, não obtivesse para o meu proceder a annuencia de V. M.
V.M. conhece-me bem para saber que esta carta não é, não pode ser resultado de um desses amúos artísticos de que a ambição turbulenta e a cubiça insolente costumam usar com prospero exito nesta terra classica de medrosos, e que é simplesmente inspirada pela consciencia de que tenho a cumprir um dever moral para comigo. Não espero, nem desejo fazer ruído. O ruído é próprio dos grandes concursos do mercado, e eu não estou no mercado. Ao pôr do sol, a sombra da arvore vai-se alongando e esmorecendo até se desvanecer de todo, e ninguem repara em que ella desappareceu. Procurarei imitar a sombra da arvore, se a ultima prova de indulgencia que peço a V. M. me consentir esse insensível desapparecer.

Pela mercê que supplico e com que desde já conto, beijo a mão de V. M.

Ajuda 31 de dezembro de 1862.

A. Herculano"


1 comentário:

  1. «O ruído é próprio dos grandes concursos do mercado, e eu não estou no mercado.»

    Numa «terra classica de medrosos», quem se manifesta assim é, efectivamente, um grande exemplo. Obrigado por recordá-lo aqui.

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