domingo, 27 de novembro de 2011

Uma história de Jorge de Sena, sobre a "incolaridade"...


No primeiro capítulo (Panorama da Literatura Portuguesa) do seu livro "O Reino da Estupidez" (I), Jorge de Sena, quase em jeito de comic relief, refere:
"...Eu interrompo para contar uma história. Uma vez, visitei certa cidade da nossa província. Nessa cidade, havia vários escritores e, naturalmente, vários poetas. E, no passado da cidade, figuravam vários autores ilustres, por acaso todos citados num guia artístico da mesma cidade, que era obra, a obra única, sempre enriquecida de novas achegas a cada edição, de um dos vários escritores que na cidade havia. Eu dei-me ao trabalho de conhecer, por folheio, essa obra única e as obras dos antigos e modernos que ela nomeava. Os autores, ao todo, eram 17, número assaz grande para uma cidade de província, visto que nenhum deles chegara à capital. Desses 17, oito tinham sido ou eram poetas, e os restantes nove: um era o autor do Guia; dois eram co-autores de uma memória erudita sobre o fontanário que, no século XVII, o 3º morgado de Piririm mandara construir na praça principal; outro, era autor de um vibrante e bem documentado opúsculo em que se provava que o Morgado da memória era o 2º e não o 3º; o quinto era um sargento-mór, que, no século XVIII, escrevera um notável trabalho sobre a excelência administrativa do Marquês de Pombal ao suprimir uma paróquia da região; o sexto, um virtuoso frade que, já entrado o século XVII, publicara uma compilação de orações contra febres terçãs, o mau olhado, etc., ainda de uso nos lares tradicionais daquela província; o sétimo, um deputado da Regeneração, que publicara um longo poema em oitavas sobre «A Moura de Salsifrão», conhecida lenda, o que lhe valera ser sócio da Academia Real das Ciências; o oitavo... - enfim, o oitavo e o nono também haviam escrito qualquer coisa, e um deles escrevera mesmo uma série de novelas inspiradas nas do Visconde de D'Arlincourt, que a Rollandiana incluíra no seu fundo perene. Já agora sempre direi que, destes últimos dois, o outro era moderno e crítico, crítico inteiramente literário, todas as semanas, no jornal da terra, folha que, por sinal, saía duas vezes na semana apenas. A sua crítica incidia sempre sobre um livro recentíssimo; e todavia, cotejando sucessivos números (um sim, um não) do jornal, ficava-se com a impressão de que falava sempre do mesmo, que não tinha mesmo importância nenhuma o livro ser de versos ou sobre a China - louvável exemplo de independência crítica!
Quanto aos poetas... enfim, os poetas, todos eles, haviam feito versos. O mais recente, contemporâneo, poderia até ser incluído nas escolas moderníssimas. Cito esta estrofe, muito bela, sobre o princípio da contradição:

O que deixou de ser.
O que deixou de ser já é.
Ser ou não ser é o mesmo.
O mesmo era e não era.
Só a fome fica.
Minhas mãos, ó povo!
Aurora.

A última edição do "Guia Artístico" citava-o, por regionalismo, mas com naturais reservas, chegando a insinuar que a sua poesia era «perigosa e mórbida» (sic). Não era. Mas citava-o, o que é uma vitória do regionalismo.
Parti daquela terra, lamentando não poder demorar-me mais. Não se convive, assim, todos os dias, com uma mão-cheia de literatura portuguesa. E é pena. Mas recapitulei quase tudo nos manuais existentes, embora - que injustiça! - nem sequer citassem aquele primoroso "Guia Artístico".
Acabo aqui a história. Porque não falaremos de poesia noutra altura?                                     1951" 

2 comentários:

  1. Ironia certeira e finíssima! Há um prazer amargo nesta leitura...

    ResponderEliminar
  2. É realmente uma belíssima parábola à Sena, que ilustra também um certo panorama cultural, daqueles ano muito "bipolares", em Portugal...

    ResponderEliminar