sábado, 2 de abril de 2011

Notas de Leitura I: Camus - "O Primeiro Homem"

O silêncio sobre a guerra da Argélia atravessa o texto em surdina: um eco de explosões e de brutalidade corta o bafo do sol mediterrânico e o peso da noite africana fechando-se rápida; na escrita de O Primeiro Homem desenha-se uma linha de melancolia e de ressonâncias bíblicas de que só a verdade é capaz.

O retrato difuso de um pai desconhecido, reinventado na figura do professor primário, por um protagonista simultaneamente criança, adolescente e adulto; a mãe que a pretexto de não ouvir traduzia o amor num olhar de silêncio com cristais de alheamento; o tio, surdo, que transformava o afecto em gestos; a avó que fazia do instinto de sobrevivência uma forma de sabedoria: recordações quase secas de passado, tenacidade e pobreza.

Por isso, mais do que a imagem improvável de Henry Cormery, morto em 1914 na batalha do Marne, Jacques Cormery quis, afinal, construir a sua própria memória, expurgando-a dos confortos da ilusão.

Os fios da realidade, que o tecido frágil da ficção não oculta, revelam-nos também, por força da incompletude e da intrínseca imperfeição desta derradeira narrativa de Camus, não apenas a oficina do escritor, a simplicidade dos seus materiais, a sua recorrência, mas, sobretudo, o modo como o fluxo da escrita confere a esses materiais simples a profundidade e o excesso próprios da vida, que se abre e se desenrola entre a chaga flor.

Quase não há análise psicológica em O Primeiro Homem, apenas registos de comportamento, e a diferença de Camus, o seu desajustamento relativamente ao ar do tempo, a frescura desta narrativa - que, recorde-se, foi encontrada na sua pasta, aquando do acidente que o vitimou em 4 de Janeiro de 1960 - está, porventura, nesse silêncio e nessa reserva, no reconhecimento da impenetrável obscuridade da natureza humana, oscilando entre o afecto e a indiferença, entre a crueldade e a compaixão, entre a contenção e a revolta. E é exactamente no sublinhar dessa estranheza, dessa dimensão algo bipolar no homem e na natureza, dessa alternância de luz e de sombra, que se encontra o melhor deste texto de Camus: uma forma de religiosidade sem crença, de generosidade laica, de amor sem objecto, que nasce da ânsia de viver e se alarga a uma espécie de fraternidade cósmica.


A pobreza é a circunstância, a condição “que não se escolhe mas que pode guardar-se”. E é no modo de encarar a pobreza, enquanto “fábrica de heroísmos mudos para a história” e onde nasce “a vergonha de ter vergonha” que O Primeiro Homem nos dá a ver, mais em forma de discurso do que em forma de romance – pois de que serviria contar a história da pobreza que não se escolhe e não dizer, de viva voz, com a veemência das palavras, o modo como a pobreza se guarda - , a maneira como, apesar do filtro burguês da educação, o pudor da coragem e o orgulho de ser capaz bastam para que o homem regresse sempre, sem trair, aos fundamentos da sua circunstância e aí reencontre, entre o rigor e a poesia, como sístole e diástole, o pulsar certo do coração da vida.

Tudo como se a virtude da pobreza tocasse a raiz de uma outra forma de aristocracia e alcançasse o luxo do despojamento sem a ganância da posse, num estado de acomodação da revolta transformada em destreza física, inteligência e emoção. Eis o retrato de Jacques Cormery e, porque não, do próprio Albert Camus.

Pela forma como excede o tecido da ficção e testemunha uma visão do mundo, por vezes incómoda nos seus silêncios, mas que cinge a condição humana na sua realidade mais profunda, em que o escrever e o pensar se conjugam e se confundem no vigor de um mesmo acto e na intimidade de um mesmo gesto, O Primeiro Homem escapa, por assim dizer, às demasias do tempo. Dir-se-ia que uma certa nudez ilumina, sem a querer explicar, a obscuridade que nos torna íntimos de nós e confere a este texto de Camus o eco de um registo clássico, uma espécie de triunfo da imperfeição, ao surpreender, nas marcas da sua incompletude, o momento em que, como diria René Char, “a lucidez é a ferida mais próxima do sol”.
Post de H.N.

PS: um agradecimento efusivo, embora discreto, a H.N. pela sua colaboração privilegiada, no Arpose.

4 comentários:

  1. Saúdo este novo colaborador do Arpose e esta nota de leitura.
    Gostei da citação que fez de Char.

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  2. Para H.N.:
    Uma estreia belíssima. Parabéns ao novo colaborador.

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  3. Belíssimo texto! Gostei muito.
    «Apropriei-me», de forma descarada, da citação de René Char. Espero que não leve a mal...

    Para APS: obrigada.

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  4. Agradeço (duplamente), e em nome de H. N., que não se importará, com certeza. Concordo consigo, c. a., que é um belíssimo texto, e uma atenta e certeira análise da obra de A. Camus.

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