segunda-feira, 25 de abril de 2011

Um poema de E. de A., pelo 25 de Abril



Soberania



Voltar, recomeçar - com que palavras? Um bando de ganapos ri, canta na esquina da rua. Gostaria de pensar que eu e essas vozes que chafurdam na noite se ignoram até aos ossos. Mas não é assim: a vulgaridade desses sons atravessa as paredes; são, apesar dela, uma companhia. Habito um país sem memória - alguém sabe de lugar mais triste? É o tempo do tordo branco emigrar. Voltemos pois ao princípio. E o princípio são meia dúzia de palavras e uma paixão pelas coisas limpas da terra, inexoravelmente soberanas. Essas, onde a luz se refugia, melindrosa. Só elas abrem as portas aos sortilégios, e os sortilégios são diurnos, mesmo quando invocam a noite, e as águas do silêncio, e o indelével tempo sem tempo. 3.2.86, Eugénio de Andrade.



Nota pessoal: toda a grande poesia, todo o poema autêntico deflagra em várias direcções, com a força de uma arma, como uma mina defensiva e terrestre, nuclear e concentrada, que sobressalta, fere e atinge vários corpos. Por isso, este poema em prosa, "Soberania", incluído no livro Vertentes do Olhar, de Eugénio de Andrade, hoje, 25 de Abril.

4 comentários:

  1. Bonito, assim como o quadro de Armando Alves.

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  2. «Habito um país sem memória - alguém sabe de lugar mais triste?»
    Não conhecia. É magnífico... Obrigada, APS.

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  3. A partilha paga-se por si, c.a., e foi um gosto (é quase sempre) reproduzir esta prosa poética de E. de A..

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