quarta-feira, 27 de maio de 2015

Critérios


Não sei que escola pedagógica da modernidade fez difundir, de forma acrítica, a inefável teoria de que se deveria estimular a auto-estima das crianças no sentido e com o objectivo do seu desenvolvimento harmonioso e do seu equilíbrio humano. Num país, como o nosso, em que o sentido crítico dos cidadãos sempre foi deficitário, creio que esse princípio foi tragicamente pernicioso. Qualquer pequeno rabisco de uma criancinha era aplaudido como obra-prima; incentivavam, nas escolas, pequenos seres a fazerem poemas que, independentemente do seu valor, eram sempre saudados, entusiasticamente. E assim por diante... Lá fora, creio que se fez o mesmo. Criaram-se países virtuais apenas habitados por génios. Para si mesmos, sem qualquer sentido de realidade e de grau.
Hoje, no Calhariz, vi um frenético jovem estrangeiro a fotografar, sistematicamente, tudo o que mexia ou estava parado: bocas de incêndio, cãezinhos, vitrinas de pastelaria, o celebrado eléctrico 28, caixotes de lixo... Sem qualquer critério, em suma. Que, depois, irá publicar, talvez, no seu popular Blogue, sempre muito visitado. Mais um génio para "de entre família", como dizia o Pessoa, sempre actual, ainda hoje.
Um pouco de modéstia, outro tanto de sentido crítico e uma boa dose de bom senso não fariam mal a ninguém e seriam salutares, no sentido de separar o trigo do joio, o lixo daquilo que, realmente, se deve recordar. Evitando esta exposição excessiva de mau gosto, este protagonismo medíocre de banalidades, esta assustadora falta de critério.
Em contraponto. Quando abordaram Jacques Brel para que viesse a integrar a prestigiada e séria colecção "Poètes d'Aujourd'hui" ( da Pierre Seghers), o belga ficou varado, corou e achou que as suas canções não eram dignas de tamanha honra. Tentando demovê-lo, o representante do editor perguntou-lhe: "Que vous manque-t-il pour devenir un poète?" E Brel, em toda a sua simplicidade, respondeu: "Y croire!"

6 comentários:

  1. Desde há uns anos para cá que andamos um bocado ao sabor da corrente de "génios"em teorias de educação, que aparecem e desaparecem sem deixar rasto. Mas a verdade é que isso reflecte-se na educação, nos programas, nas orientações na escola...e os professores são arrastados obrigatoriamente em modernices que em nada beneficiam a aprendizagem e a educação. Ao longo de 33 anos de professora, já passei por tanta mudança, tanta ideia nova...que depois se vem a revelar ineficaz e se muda e assim sucessivamente...
    Já tive que seguir ideias, programas e métodos de ensino com os quais não me identifico, nem concordo. Quando é possível, faço as coisas à minha maneira, quando não é...lá tenho que seguir o rebanho, porque tenho que ganhar o meu sustento.

    Quanto ao elogio, sou de opinião que devemos incentivar as crianças a fazer, a melhorar, a tentar...tanto dou um elogio (mesmo que as coisas não sejam perfeitas, mas quando há esforço e evolução), como dou um raspanete se sei que os alunos fizeram porcaria e conseguem fazer melhor. Não os humilho, mas "pico-os" e tento que vão melhorando sempre. Às vezes sou dura.

    Mas em tudo tem que haver bom senso. Levá-los a querer fazer, a querer melhorar não quer dizer que não chegue uma altura em que tenham que perceber que nem todos são génios. E têm que aprender a saber lidar com a frustração.
    Resumindo: como educadora tento sempre fazer com que os alunos percebam que todos temos qualidades e incapacidades. Temos que saber aceitar aquilo que somos.

    Geniosinhos mimados é coisa que acho muito irritante e deprimente.

    Escrevi tanto, e se calhar fugi ao assunto, mas este tema mexe comigo.

    Boa noite:)

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    1. O seu texto é, no mínimo, um estímulo para mim, e um comentário precioso de quem não esquece a realidade objectiva e procura, com pragmatismo, contribuir para novas gerações lúcidas e cidadãos responsáveis, conscientes dos seus defeitos mas, também, das suas potencialidades a realizar. A sua tarefa diária, estou consciente disso, é das mais nobres, mas também das mais difíceis.
      Ao longo da minha vida profissional - menos nobre, contudo - nunca regateei elogios, quando merecidos, mas nunca poupei críticas quando devia fazê-las. Nem sequer por compaixão o falsa caridade cristão. A minha própria experiência humana me dizia que uma crítica justa é sempre um degrau que subimos, em direcção à qualidade humana e profissional.
      Desejo-lhe, cordialmente, uma boa noite!

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  2. Geniozinhos...não me apercebi que escrevi asneira :( ...

    Concordo com tudo o que diz:)

    Boa tarde:)

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    1. Acontece... eu também tenho uma gralha, no re-comentário: "o", em vez de - ou.
      Bom fim de dia!

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  3. Uma amiga minha foi falar a uma aula de mestrado e veio de lá doente: os seis futuros jornalistas não sabiam o que tinha acontecido em Portugal em 1580, não sabiam quem era Napoleão, e da Geração de 70 só conheciam (vagamente) o nome de Eça. E podia dar mais exemplos da mais profunda ignorância daquelas criaturas.
    Que país vai ser este?

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    1. O retrocesso é global, parece-me. Agora, falta saber quem o incentiva (se incentiva) e a quem ele aproveita...

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