quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A par e passo 72


A fantasia é um dos atributos da literatura, e dei-me a perguntar quais seriam os desenvolvimentos inéditos que ela, hoje, poderia explorar. Torno mais preciso o meu pensamento. Que faria hoje, ou poderia fazer, um Júlio Verne, um Wells, um construtor de mundos imaginários? Repare-se que, se eles inventaram mundos imaginários, por outro lado, nada tentaram nem um nem outro, no mundo do espírito. Não se preocuparam, por exemplo, a imaginar as artes futuras. O célebre capitão Nemo, que toda a gente conhece, no seu Nautilus, toca órgão no fundo dos mares, e neste órgão, música de Bach ou de Händel. Júlio Verne não previu a música das ondas, e não imaginou sequer combinações ou composições novas, com uma estética ainda desconhecida. Note-se que lhe foi fácil imaginar certas invenções que apareceram depois: o submarino, o avião, etc. São aquelas que não exigiam senão um desenvolvimento dos meios já existentes, combinados com as ingénuas aspirações do homem primitivo, que ele encontrou em si mesmo desde que existiu, como voar, circular nas profundezas do mar, aniquilar à distância, criar riqueza sem o trabalho correspondente. Tudo isto não exigia senão uma imaginação que se poderia chamar elementar. Mesmo Wells, no famoso livro A Máquina de explorar o Tempo não utilizou nem percorreu senão o tempo em que se encontrava, o velho tempo, o tempo que era real para ele próprio.

Paul Valéry, in Regards sur le Monde actuel (pgs. 251/2).

2 comentários:

  1. Não concordo com as apreciações que Valéry faz de Jules Verne.

    ResponderEliminar
  2. Às vezes, para justificarmos os fins, descuramos, um pouco, os pormenores intermédios..:-)

    ResponderEliminar