domingo, 23 de março de 2014

Divagações 63


O silêncio matinal e deserto de uma cidade, sobretudo em domingos inóspitos, é como se fora uma paisagem em aberto, semelhante ao princípio do mundo, onde apenas as casas e as ruas, de construção humana, podem destoar. Embora o silêncio seja tão poderoso, que faz esquecer esses sinais insólitos da mão humana.
Todos nós, decerto, já experimentámos, por insónia imprevista ou noitada escolhida, esse espectáculo raro e tranquilo da cidade adormecida, das ruas vazias, da luz crescente e insinuante que se vai adivinhando pelas sombras tímidas, pelo róseo ou rútilo com que a aurora vai vencendo, pouco a pouco, quase imperceptível, o escuro da noite.
Em desabono do derrame lírico do poste, ou do sentimento poético, e por associação lógica, quando penso nestas manhãs de domingo de cidades desertas, vem-me sempre à memória uma imagem do filme "A Ultrapassagem" (Il Sorpasso), de Dino Risi (1916-2008), com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, entrando em Roma, numa manhã dominical.
Já no centro de Roma, e velozmente, os dois ocupantes do carro desportivo, depois de ruas e ruas vazias, vislumbram um único passeante matinal, numa praça, levando dois cães pela trela, que quase o arrastam. Ao passarem por ele, Gassman grita-lhe: "Liberta-te, escravo! Solta os cães!..."

6 comentários:

  1. a descrição inicial é fantástica, gostava de ter sido presenteada com o dom de descrever as minha manhãs assim...
    não conheço o filme mas, vou procurar :)

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  2. De algum modo (e não sei até que ponto) este texto foi-me despoletado pelo seu poste, que começa "...Aos que enfrentam cidades vazias ao Domingo de manhã". Por isso, alguma coisa lhe devo... Nunca estamos sozinhos.
    O filme de Risi, que vivamente lhe recomendo, é uma belíssima comédia, com fim trágico, e desempenhos notáveis de Trintignant e Gassman.
    Votos de uma boa semana!

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  3. Também gosto de assistir ao amanhecer e de sentir a cidade ainda quieta ( estou a lembrar-me de Lisboa, junto ao Tejo).
    O filme não conheço, mas deixou-me curiosa.

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    1. Sempre que assim calha, também aprecio, sobretudo pelas cores que antecedem a manhã.
      Sobre o filme, creio que não existe, integralmente, no Youtube - apenas extractos pequenos. Mas é uma das grandes obras do período áureo do cinema italiano.

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  4. Gostei.
    Há muito que não vejo o filme, mas lembro-me perfeitamente da cena que descreve.

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  5. Obrigado.
    A cena é, realmente, inesquecível..:-)

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