sábado, 29 de novembro de 2014

A par e passo 116


Enfim, quantas obrigações! Deveres dissimulados no conforto da sua própria existência! Obrigações de comodidade, as preocupações sobre o dia de amanhã multiplicam-se no dia a dia, porque a organização cada vez mais perfeita da vida nos aprisiona num círculo, cada vez mais apertado, de regras e de constrangimentos de que muitos nem se apercebem. Nem sequer temos consciência de tudo aquilo a que obedecemos. O telefone toca, e logo corremos para ele; o relógio dá sinal, e logo temos que nos apressar para os encontros marcados... Pensemos naquilo que representam, para o nosso espírito, os horários de trabalho, os horários dos transportes, as obrigações crescentes de higiene, até mesmo as regras de ortografia que dantes não existiam... Tudo nos comanda, tudo nos apressa, tudo nos prescreve aquilo que devemos fazer e nos ordena a que o façamos automaticamente. A análise dos reflexos automáticos torna-se o principal exame do tempo actual.

Paul Valéry, in Variété III (pg. 226).

5 comentários:

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    1. É realmente muito perspicaz esta reflexão de Valéry.

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  2. E num sopro, tudo muda. Uma viagem, uma queda, uma doença, uma... (seja o que for, até por vezes a inveja) faz com que o tempo seja contado de maneira diferente. Somos escravos, por vezes, porque queremos! Outras vezes não conseguimos viver sem essa "escravidão". E as piores algemas são as de cristal.

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    1. Quando damos por elas..., pelas de cristal...
      Mas há servidões, em determinadas alturas da vida, que são impossíveis de quebrar.

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  3. Tal e qual!

    Acho que com a idade (ou com a preguiça...) deixei de ligar a muitas coisas que antigamente me "dominavam". Há compromissos que não podemos mesmo evitar, por uma questão de sobrevivência, mas outros...podem perfeitamente "ficar para amanhã" ou para nunca :)

    É mesmo isso: "somos escravos porque queremos".

    Boa noite:)

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