segunda-feira, 23 de março de 2020

De JRJ, sobre Camões


Ler correspondência alheia constitui, uma boa parte das vezes, uma forma daquilo a que eu costumo chamar com ironia: coscuvilhice nobre. Noutros casos, permite saber melhor como foram e pensaram alguns homens célebres, no passado, para o efeito de melhor os conhecermos ou à sua obra.
Esta carta em tom bem humorado, do poeta Juan Ramón Jiménez (1881-1958), dá-nos uma ideia da opinião que ele tinha sobre Camões e, por isso, resolvi traduzi-la para o Arpose.
Segue:

                                                                                                                 Madrid, 13 de Janeiro de 1924

Senhor Dom Juan Guixé, El Liberal.

Meu querido amigo:

 Recebi esta noite, às sete, a sua amável carta pedindo a minha opinião sobre a ideia de O Liberal enviar a Portugal uma "embaixada" extraordinária de poetas espanhóis, tendo como motivo o centenário de Camões. E solicita-me que eu lhe responda hoje mesmo.
 Há tempos que não leio jornais e, por isso, não posso senão referir-me à sua missiva: um juízo meu sobre Camões "glorificado" não teria qualquer valor, uma vez que só li do poeta luso as suas poesias dispersas e estou certo de que não é por umas belas poesias soltas que um país celebra oficialmente os centenários dos seus vates. O seu poema "nacional", salvo das águas pelo seu braço e seu único olho, nos anos quinhentos, nunca me atraiu excessivamente, apesar de me ter obrigado a folhear as suas páginas húmidas; nem sou capaz de abordar, esta noite, as suas oitavas - somente creio na saborosa crítica espontânea - para improvisar um desses apagados, estranhos, antipáticos, infecundos, ajuntadores circunstanciais - Azorín, dom Ramón Perez de Ayala, dom E. de Ors - que se vão fazendo todos os dias por aí. Tão pouco, enfim, tenho sequer notícia de algum trabalho de dom Ramiro Maeztu sobre poesia épica portuguesa, que fosse bastante eloquente, sem dúvida, como outros seus ensaios, para que cristalizasse em mim, de súbito e definitivamente, uma opinião  contrária.
 Crêem os espanhóis competentes que o desventurado Camões é um grande poeta do trono terrestre, marinho e celestial? Nesse caso, é indubitável fazerem-se as coisas com elevação e respeito, e assim que seja dom Miguel Unamuno a "representar-nos" nessa comemoração, bem como dom Antonio Machado, os mais portugueses dos nossos actuais poetas. Se, pelo contrário, miscelâneas político-jornalista-literárias, como é costume fazer-se, decidam formar-se em amigável consórcio com os seus parceiros, como sejam O Menino de Vallecas e O Bobo de Coria - veja-se o documento inapreciável de dom Juan Echevarria - nosso actual e fulgurante Azorín das Hurdes, perito em tortas e papas; de que eu fujo como se fosse da fogueira.
 Não me é possível mandar-lhe o meu retrato, nem creio que seja necessário, neste caso, publicá-lo.
 Obrigado por tudo, deste seu afectuoso amigo,
                                                                                                                                 Juan Ramón Jiménez

Nota: a carta foi traduzida de JRJ Cartas / Antologia (Espasa Calpe, 1992).

7 comentários:

  1. Quem não sabe, não diz. Boa lição. Aplique-se.

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  2. «seu afectuoso amigo»... :)
    Bom dia!

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  3. Parece-me existir um certo sarcasmo nas observações de J.R.Jiménez.
    Boa tarde.

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    1. O grau de ironia, sarcasmo e despeito parece difícil de medir com rigor. Provavelmente, um pouco de cada um.
      Uma boa noite.

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  4. Fico um bocadinho desiludida pelo que me parece ser a opinião do escritor:(

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    1. Tente reler "Os Lusíadas", Isabel, agora que tem mais tempo...
      Eu fi-lo, como exercício crítico, mas com alguma maçada ( como fiz com o "Guerra e Paz", de Tolstoi) e que, afora três ou quatro momentos geniais, foi à força de persistência que cumpri; porque a obra lírica de Camões é muitíssimo mais compensadora. Há que ver a realidade de hoje.
      Tenha uma boa tarde.

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