segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Reflexões sobre o ócio, a propósito da leitura de "Guerra e Paz", de Tolstoi


É habitualmente aceite, hoje em dia, que o ócio é imprescindível à criação artística, muito embora o facto possa ser mal visto pela grande maioria das pessoas comuns.
Haverá, porventura e para um leitor, duas formas fundamentais de ver e apreciar uma obra de ficção: pelo enredo ou pela construção do romance. É mais ou menos óbvio que a sociedade descrita por Tolstoi, em "Guerra e Paz" é a de uma classe social que se dedica, quase sempre, a ocupar os seus tempos livres, da forma mais agradável que acha possível.

...O gosto da ociosidade permaneceu no homem depois da queda, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só porque é obrigado a ganhar o pão que come com o suor do rosto, mas ainda porque a sua natureza moral o impede de encontrar contentamento na indolência. Uma voz secreta nos insinua que é culposo entregar-nos à preguiça e, entretanto, se o homem pudesse encontrar um estado onde lhe fosse dado sentir que continua a ser útil e a cumprir o seu dever permanecendo inactivo, deparar-se-ia nele uma das condições da felicidade pretérita. Esse estado de ociosidade imposta e não digna de censura é aquela de que goza uma classe inteira da sociedade, a dos militares. É esta ociosidade que constitui e constituirá sempre o principal atractivo do serviço no exército.
Nicolau Rostov experimentava plenamente essa beatitude a partir de 1807, continuando a servir no regimento de Pavlograd, onde comandava já o antigo esquadrão de Denissov. ...

E, se o excerto antecedente, de Tolstoi (pg. 88 do II volume de "Guerra e Paz"), aponta um dos ócios consentidos pela sociedade russa da época - o ócio dos militares -, também é verdade que eu nunca tive o meu tempo mais ocupado do que quando cumpri o meu serviço militar, já lá vão uns bons anos. Porque , ao não haver nada de útil e concreto para fazer, havia que ocupar, milimetricamente, todos os minutos e dias da vida militar: em exercícios, em arengas que exortavam à guerra, em treinos de tiro, em caminhadas e na dita instrução.
Hoje, o ócio mais consentido e dignificante, do ponto de vista social, é, sem dúvida, o dos CEO e o de alguns gestores de nomeada que se dedicam e desmultiplicam em assinaturas muito desenhadas, nas administrações de várias empresas e multinacionais - o ócio post-moderno.
Mas há, também, o ócio compulsivo: do desemprego crescente, actual.

6 comentários:

  1. Óptimo, porque também a acho muito perspicaz.
    Bom dia!

    ResponderEliminar
  2. O ócio, para mim, implica algum vagar que se possa ocupar como cada um muito bem entenda, mas com prazer.

    ResponderEliminar
  3. A ociosidade é, pelo contrário, é uma certa inércia da qual não se retira qualquer satisfação.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ócio, ou até lazer, têm ainda, e quase sempre, um sentido pejorativo, que eu não lhes concedo. Pensar, ir criando, ler podem ser, e são para mim, algumas das úteis ocupações do ócio.

      Eliminar